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    A festa da ingratidão

    Por Hugo Brito

    Acompanhei todo o seu esforço. Testemunhei de perto os sacrifícios seus em nome da vitória e da alegria da filha. Estive próxima não apenas na condição de vizinha, mas também de amiga. E quando pude, auxiliei… às vezes com o mínimo, mas auxiliei. Sua determinação me comovia.

    Mãe solteira, Marta criou sua filha com os cuidados e afetos que não permitiram o sentir da ausência de um pai. E uma ausência espontânea, pois ele as abandonou quando ela ainda vivia as dificuldades da gravidez. Deixou-a por uma mulher mais jovem, e a nova conquista não aceitava que ele estabelecesse contatos com a filha. Nasceu aí o distanciamento completo.

    Somos de uma cidade bem pequena do interior. Aqui, o caminhar da vida parece ser mais lento e as alegrias e as dores são mais sentidas. Foi nesse ambiente que minha amiga criou sua filha e lhe transmitiu valores. Trabalhando como doméstica, não deixou que nada faltasse. Apesar de ter apenas o curso primário, a mãe guerreira entendia que a educação era o caminho mais acertado para uma vida mais tranquila e diferente da sua, uma vida de sucessos. Por pensar assim, cuidou desde sempre para que a filha não se ocupasse de afazeres que lhe roubassem o tempo dos estudos. E a menina, disciplinada, bem seguiu os caminhos acertados da vida.

    Ainda hoje lembro dos choros de minha amiga ao receber a notícia da aprovação da filha na faculdade de medicina. E foi um acontecimento em nossa pequena cidade. Era algo incomum, que fugia da regra. Incontida, Marta caminhava transbordante de sorrisos pelas ruas e contava, sempre com a voz entrecortada pelos choros, a conquista da filha. Alegraram-se com a sua alegria. Não era só a vitória da filha, mas, principalmente, da mãe. E a cidade inteira sabia de sua luta.

    Aí veio o desafio: mandar a jovem estudar na capital. E como fazê-lo?

    Não há como esquecer dos sacrifícios feitos. Marta bateu nas mais variadas portas pedindo ajuda para a mudança da filha. E conseguiu.

    Os seis anos de faculdade passaram à custa de muitas privações para minha amiga. Durante a semana, eram dias inteiros dedicados às cozinhas alheias. Nos finais de semana, lavava grande quantidade de roupas para três famílias. E o que a filha pedia, ela conseguia mandar. E fazia com amor. Nunca dizia das dores que sentia ou de quando estava doente. Entendia que era uma maneira de não atrapalhar. Do que recebia em dinheiro, ficava com menos da metade. Quase tudo era direcionado à menina.

    O que me causava estranheza, era o distanciamento que só crescia. No primeiro ano de faculdade, logo no início, a jovem ligava todos os dias para sua mãe. Cada ligação, choros. Depois de oito meses, os contatos foram reduzidos para os finais de semana e já eram desacompanhados de choros. Após um ano, uma ligação no mês e sempre para perguntar sobre o depósito do dinheiro. As conversas eram rápidas e objetivas. Os aniversários de minha amiga foram sepultados na lembrança da filha. Com tristeza, Marta sempre dizia que entendia a vida universitária e sabia que a rotina era difícil, por isso as ausências de ligações. Eu fingia que acreditava e reconfortava minha vizinha. Nunca lhe contei das fotos semanais em festas frequentes postadas por sua filha. Restaurantes de aparência rica, roupas caras, viagens, mensagens de aniversários para amigos! Tudo no instagram. Marta não tinha rede social e nem sabia utilizar a internet. E era melhor assim.

    Mas naquela tarde eu senti sua dor. O barulho dos seus soluços se fez ouvir em minha casa. Saí às pressas sem entender o que estava ocorrendo. Deparei-me com uma realidade que também fez irromper meu choro. Marta, minha amiga de tantos anos, sentada na escada de sua casa, chorava compulsivamente. Foi então que lembrei: naquele dia, exatamente naquele momento, a filha de minha amiga estava comemorando sua formatura em uma festa para a qual minha vizinha não foi convidada. Ela dizia que o choro era de alegria pela formatura da filha, mas eu sabia que não. Ou ao menos não era só de alegria. Sei que havia dor naquele gesto. Ela não foi convidada para um momento que só ocorreu por conta de suas privações, de seu envelhecimento precoce, das roupas sempre velhas, das doenças não tratadas por falta de dinheiro, das sandálias desgastadas, dos finais de semanas não vividos.

    Enfim… não era uma festa de formatura, era a festa da ingratidão.

    ** Hugo é advogado e um amante incurável dos livros de literaturas cânones