Panfletos sobre como aliciar meninas e meninos on-line e induzi-los à automutilação; guias explorando os “pontos fracos” do corpo humano; tutoriais de como vencer uma briga com facas; e informativos com táticas de como executar de forma bem-sucedida um ataque contra multidões usando um caminhão. Esses são apenas alguns exemplos de conteúdos que são disseminados dentro de redes e grupos de cibercriminosos e extremistas na internet.
Uma dessas publicações, produzida por um dos diversos grupos ligados a uma das redes transnacionais consideradas por especialistas do campo como uma das grandes ameaças emergentes, instrui criminosos em potencial a como fazer com que vítimas confiem neles e, assim, passem a se expor por meio de conteúdos que mais tarde serão usados como moeda de troca para extorsão, chantagem e até para uma ascensão dentro da hierarquia do grupo.
A instrução principal é a abordagem de crianças e adolescentes em condições já vulneráveis, como transtornos alimentares ou psicológicos, que seriam “alvos ideias” ou “ativos de valor”. O material ainda sugere descartar as vítimas após seu “uso”, quando já deixaram de ser úteis para seus respectivos objetivos.
A linguagem aplicada nos materiais faz parte de um manual de manipulação afetiva com fins abusivos. O conteúdo faz referência aos crimes de aliciamento, assim como a indução à automutilação por meio de cortes no corpo, normalmente com símbolos ligados ao grupo específico que conduziu os crimes.
Surgido nos Estado Unidos e identificado no Brasil pelo menos desde 2021, a The Com/764 é composta por uma estrutura formada por subgrupos e células, que atuam de forma descentralizada em diversas plataformas.
Classificada como satanista, extremista violenta niilista e neonazista, a rede está ligada a casos de repercussão nacional. Entre eles, estão ataques a escolas, investigações em curso sobre ataque a morador de rua, transmissão de assassinato de uma criança, e até ao planejamento de atentado ao show da cantora Lady Gaga no Brasil, no início de maio.
A sua atuação expõe grande parte do que é possível encontrar no submundo do crime digital atualmente. Os criminosos promovem abusos, fazem apologia à automutilação e suicídio, e estimulam ações violentas. O recrutamento de novos membros e identificação de vítimas opera num fluxo constante em diversas plataformas e provedores de serviços on-line.
O alcance desses crimes vem acendendo um alerta das autoridades, que têm ampliado a atenção aos crimes cibernéticos, inclusive com a criação de departamentos dedicados somente a essa seara.
Uma das corporações que possui um departamento para crimes cibernéticos é a Polícia Federal (PF), que apura esses crimes digitais com foco principalmente nos indivíduos que estão no topo das hierarquias desses grupos.
Tanto dentro da PF, como em outras órgãos ouvidos pela coluna, a percepção dos investigadores é que crimes visando a atração de vítimas jovens por meio das redes sociais têm aumentado no últimos anos.
Plataformas como o Discord, Telegram, Whatsapp e o ecossistema gamer, assim como redes menores, as chamadas “alt-techs”, são alguns dos ambientes frequentemente citados nas investigações.
Apesar disso, policiais frisam que, via de regra, as plataformas têm tido uma postura colaborativa, compartilhando dados solicitados e dando apoio à apuração. Além disso, as redes também dizem estar investido em melhorias no controle de sua comunidade e dos conteúdos compartilhados (leia mais abaixo).
Um exemplo marcante sempre lembrado pelas autoridades é o “Terrorgram”, classificado pelas autoridades americanas como uma organização terrorista que se organizava em canais do Telegram. Ao longo da apurações, foi identificado um brasileiro que faria parte do coletivo.
A transnacionalidade dos crimes é igualmente um fator apontado pelos investigadores. São frequentes os relatos de casos em que estrangeiros -ou brasileiros no exterior- atuam contra vítimas no Brasil.
Atuação da polícia
No caso de agentes federais, o mais comum são investigações que miram os controladores do grupo. Eventualmente os criminosos que atuam na ponta dos ataques também podem estar envolvidos nas apurações.
Para Flávio Rolim, que atua na divisão de crimes cibernéticos da PF, esses grupos, apesar de não obedecerem a uma formação tradicional, são entendidos de forma similar às organizações criminosas. Neles, existe uma estrutura organizada de poder, divisão de tarefas e composição hierárquica.
“O conceito de organização criminosa é a reunião de quatro ou mais pessoas de forma estável e permanente para a prática de crimes. Então, se adequa perfeitamente. Inclusive, nas nossas investigações, a atividade é também de organização criminosa. Porque não há dúvida que é uma estrutura hierarquizada com a divisão de tarefas”, relata.
Segundo ele, os crimes mais comuns identificados nas investigações têm sido a indução ao suicídio ou à automutilação, desafios envolvendo maus tratos aos animais, além de abuso sexual contra vulneráveis.
Ao mesmo tempo, outro fenômeno também tem surgido nas redes, conta Rolim: a monetização de conteúdos ilícitos, inclusive com preços tabelados para cada modalidade de crime.
“Hoje existem tabelas de pagamento. Por exemplo: corte no rosto, corte no pescoço, corte na perna, incendiar um mendigo, invadir uma delegacia… E tudo isso com valores sendo pagos. E são pagos mesmo”, afirma.
“Por exemplo, hoje nós temos grandes players abusadores que produzem, por exemplo, material de automutilação […] É um tipo de abuso sexual infanto-juvenil que tende para a violência. Então, esse material hoje já é vendável. Hoje não, desde sempre. E esses grandes players, que vendem material, eles entenderam que eles podem produzir isso”, disse Rolim à coluna.
A delegada Lisandrea Colabuono, chefe do Núcleo de Operações e Articulações Digitais (Noad) da Polícia Civil de São Paulo, também relata um perceptível aumento de casos.
“O que a gente vê nitidamente é que está aumentando a cada dia. O núcleo que eu coordeno, nós somos hoje em sete policiais civis, eu sou um deles, e a gente trabalha infiltrado 24 horas, sete dias por semana. E o que a gente nota é que tem aumentado muito”, conta.
Além de mirar os grupos, o núcleo coordenado por Colabuono se dedica à identificação dos chamados “eventos”, dinâmicas on-line que englobam as práticas dos desafios como o do “chroming” -quando a vítima é induzida a aspirar desodorante até desmaiar -, ou do “blackout” – quando envolve sufocamento, entre outros.
Um caso que ganhou repercussão nacional envolvendo o “desafio do desodorante” é o de Sarah Raíssa, de 8 anos, que teve morte cerebral após inalar gás tóxico. Ela teria sido influenciada por uma tendência que se tornou popular nas redes.
Tais “eventos”, apesar de parecerem isolados nas redes, estão interligados à atuação de grupos que propagam uma dinâmica de radicalização on-line violenta e englobam em suas práticas chantagem e até extorsão.
“Hoje promove um ‘evento’ com uma menina se cortando a testa, por exemplo. Depois, esse menino ou menina está degolado um cão ou um gato ao vivo. Então, não é um desafio. É uma dinâmica recorrente”, afirma Michele Prado, pesquisadora da radicalização on-line, fundadora do Stop Hate Brasil e assessora especial do NUPVE (Núcleo de Prevenção à Violência Extrema do Ministério Público do Rio Grande do Sul).
Grupos investigados por esse tipo de crimes já foram alvos de diversas ações policiais em diferentes estados do país.
Uma das operações mais recentes da Polícia Civil de São Paulo, a Nix, envolveu adolescentes suspeitos de usarem a internet para praticar cyberbullying e estupros virtuais. Segundo a investigação, os jovens são acusados de obrigar mais de 400 vítimas a cometerem automutilações e promoverem ataques a moradores de rua e animais.
Em maio, a PF também deflagrou a operação Olho de Hórus IV contra estupro virtual e abuso sexual infantil na Baixada Fluminense. Dois irmãos, de 15 e 13 anos, foram apreendidos. Durante as buscas, foram encontrados arquivos armazenados e compartilhados de violência sexual infantojuvenil nos celulares apreendidos com os irmãos menores de idade.
Esses, no entanto, são apenas exemplos que se multiplicam diariamente na internet e têm demandado cada vez mais atenção das equipes investigativas.
As dinâmicas do cibercrime
Investidas contra crianças e adolescentes têm passado cada vez mais a explorar relações afetivas com as vítimas, se aproveitando do anonimato em múltiplas plataformas para mascarar as intenções criminosas.
O primeiro contato costuma ser feito em ambientes onde jovens já estão presentes, como jogos eletrônicos, canais de streamers ou redes sociais populares.
A interação tende a começar de um jeito informal, evoluindo aos poucos para uma relação de confiança, frequentemente com conteúdo afetivo. Essa é uma estratégia recorrente em que o agressor se apresenta como um romance virtual, com quem a vítima passa a manter uma relação.
A construção dessa relação pode ocorrer ao longo de semanas e, aos poucos, o agressor propõe à vítima o envio de imagens íntimas ou conteúdos de cunho sexual.
Quando isso acontece, o que era algo voluntário, se transforma em chantagem. Nessa etapa, o criminoso passa a ameaçar expor as imagens caso a vítima não envie novos conteúdos ou não cumpra determinadas ordens. O medo, o sentimento de culpa e a pressão emocional são armas usadas com frequência.
“Eles vão atrás dessas crianças e adolescentes com conteúdo chamativo, marcadores culturais e estéticos que são facilmente reconhecidos por quem já estava previamente em outras subculturas on-line nocivas. E redirecionam para outras plataformas […] Na maioria dos casos há também uma relação ‘afetiva’ entre vítimas e agressores, fruto da própria manipulação psicológica e espiral de radicalização on-line violenta”, explica Michele Prado.
De outra forma, a busca por vítimas também pode apelar para o sentimento de pertencimento a um grupo. O vínculo entre adolescentes, que muitas vezes já apresentam vulnerabilidades sociais ou psicológicas, e integrantes de grupos que apresentam dinâmicas violentas também é citado por especialistas como ponto chave.
Nessa equação, entram também ideologias extremistas e discursos de ódio. Para Flávio Rolim, no entanto, a ideologia propagada por esses grupos tende a ser algo secundário, uma vez que serve apenas como um “agregador”, e não necessariamente como uma doutrina a ser seguida.
“Esse conteúdo nasce como um fenômeno agregador, uma necessidade de se afiliar, principalmente de jovens que estão abatidos, abandonados, com pouca estrutura sentimental. Então, eles se veem com a possibilidade de se afiliar, e aí a ideologia entra. Ela entra para dar sentido a isso”, afirma.
Outra forma de apresentar os jovens a esse mundo do crime, diz Rolim, é por meio da introdução em massa em grupos em aplicativos de mensagens. Uma vez dentro desses grupos, os usuários são bombardeados constantemente com conteúdos ilícitos, principalmente de abuso sexual, e passam a ser “recrutados” lá dentro.
“Esse primeiro contato pode acontecer de muitas formas […] A gente teve caso em que eram adicionados centenas de jovens [a grupos], onde eles eram bombardeados com material de abuso sexual. Gigas e gigas de vídeo de estupro. O que a grande maioria faz? Vai saindo. Mas ficam alguns. Então, esses jovens que ficam já são potenciais pessoas a serem aliciadas”, afirma o delegado.
Pulverização nas plataformas
Algo unânime entre especialistas ouvidos pela coluna é que os criminosos não atuam em apenas um local da internet. Pelo contrário, eles têm uma presença pulverizada e dinâmica entre diversas redes sociais.
Jogos eletrônicos e redes mais abertas são usados principalmente para o contato inicial, uma vez que são nesse espaços que a grande maioria das crianças e adolescentes transitam.
Já as chamadas “alt-techs”, ou plataformas alternativas, são geralmente menos conhecidas do público geral e também menos moderadas. Essas são utilizadas para atos mais graves, como a troca de materiais ilegais, transmissões de abusos ou organização de grupos.
“A radicalização violenta on-line, geralmente, ocorre em outras plataformas que não são as beacons [as chamadas plataformas “farol”, onde ocorrem os primeiros contatos], mas nas plataformas alternativas, que têm pouca ou nenhuma moderação. Por quê? Porque o próprio design, às vezes, da plataforma, proporciona determinadas funcionalidades que criam-se no espaço seguro e as próprias funcionalidades auxiliam nessa radicalização”, afirma Prado.
Em geral, é o criminoso que, após os primeiros contatos, sugere a migração para outras plataformas mais restritas.
O uso de perfis falsos figura igualmente como um dos principais recursos utilizados para abordar vítimas. Criados com nomes fictícios, fotos de terceiros e narrativas falsas, esses perfis se passam por pessoas que não existem, facilitando o estabelecimento de confiança.
Em muitos casos, um único agressor pode operar diversos perfis simultaneamente, adaptando o discurso conforme o comportamento da vítima. A facilidade com que essas contas podem ser criadas e a falta de mecanismos robustos de verificação de identidade em muitas plataformas digitais tornam esse tipo de estratégia eficaz, e difícil de ser detectada pelas autoridades.
Plataformas afirmam implementar melhorias
Como mostrou a coluna, diante do aumento de crimes cibernéticos contra crianças e adolescentes no Brasil, redes sociais afirmam que têm reforçado mecanismos de moderação de conteúdo, além implementar novas ferramentas de proteção e intensificar a colaboração com autoridades.
Redes como o Discord, TikTok e as plataformas da Meta, que abarca o Instagram, WhatsApp e o Facebook, afirmam que investem não apenas em tecnologia de detecção proativa, por meio de mecanismos de moderação, mas também em canais específicos de segurança, suporte a investigações e a disponibilização de conteúdo informativo para jovens e responsáveis.
O Discord, por exemplo, enfatiza a atuação em conjunto com as autoridades, e diz que tem denunciado proativamente grupos e indivíduos envolvidos nesse tipo de conduta, bem como outros comportamentos que representem riscos para terceiros.
A plataforma também diz que mantém sessões de treinamento com agentes de segurança, inclusive para capacitá-los no âmbito da solicitação de informações. Esse é, segundo o Discord, um detalhe importante para que dados eventualmente compartilhados sejam repassados de forma eficiente pelas redes e possam compor um eventual processo na Justiça.
Com relação à moderação, a plataforma diz que tem investido “fortemente” na área. Afirma ainda que, ao detectar violações das políticas, “tomamos as medidas cabíveis, incluindo o encerramento de servidores violadores, o banimento de pessoas mal-intencionadas e a denúncia de violações às autoridades policiais, em conformidade com a lei”.
Já o TikTok diz que “a segurança de jovens é prioridade máxima” e que sua arquitetura é pensada desde o início com foco na proteção de crianças e adolescentes.
A empresa também relata que tem atuado em colaboração com agentes de polícia em diversas investigações e que tem configurações diferenciadas aplicadas pela rede para usuários entre 13 e 18 anos.
A Meta, que inclui Instagram, Facebook e WhatsApp, diz que os Termos de Uso do Instagram e Facebook exigem que usuários tenham ao menos 13 anos de idade para criarem suas contas nas plataformas. “No começo deste ano, começamos a disponibilizar no Brasil a Conta de Adolescente no Instagram”.
No WhatsApp, a empresa afirma que possui políticas, tecnologias e equipes especializadas focadas em “eliminar interações abusivas”. “O WhatsApp conta com todas as informações não criptografadas (incluindo denúncias de usuários) para detectar e prevenir esse tipo de abuso, e está constantemente aprimorando a tecnologia de detecção.”, diz.
Outro ponto levantado pela plataforma é o relato de violações aparentes das leis relacionadas a materiais de abuso sexual infantil à linha de denúncia CyberTipline do NCMEC, que colabora com autoridades policiais no mundo todo.
Já o Roblox, que faz parte do ecossistema gamer, reiterou que está “constantemente evoluindo nossas políticas, tecnologias e esforços de moderação para proteger nossa comunidade, especialmente os jovens”.
“Isso inclui investir em ferramentas avançadas de segurança, trabalhar em estreita colaboração com especialistas e capacitar pais e responsáveis com controles robustos e recursos adequados. Somente em 2024, adicionamos mais de 40 novos aprimoramentos de segurança”, disse em resposta à coluna.