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    Crime digital ganha terreno no ecossistema gamer e “alt-techs”

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    O combate aos crimes cibernéticos que atingem crianças e adolescentes enfrenta hoje o desafio de mapear as variadas plataformas usadas para fins ilícitos. Para além das mais populares, criminosos têm explorado uma constelação de redes menores e plataformas gamers para buscar ou aliciar vítimas.

    A lógica de atuação segue uma estrutura própria desses grupos: plataformas mais abertas, assim como as pertencentes ao universo gamer, servem como porta de entrada para o contato com os jovens. A explicação é a presença massiva de crianças e adolescentes nesses ambientes.

    A partir do primeiro contato, e com o avanço de uma “relação”, os alvos são geralmente convidados a se deslocarem para outras redes -menores e menos moderadas -, onde o conteúdo violento é intensificado.

    Tais plataformas são as chamadas “alt-techs”, justamente pelo caráter “alternativo”. Esses espaços digitais, em boa parte desconhecidos do público em geral, tem sido usados para crimes como aliciamento, sextorsão, abuso sexual, incitação à violência e maus-tratos a animais.

    O movimento entre redes, segundo apontam especialistas ouvidos pela coluna, é um padrão dessas redes criminosas. Eles também pontuam o uso pulverizado de plataformas para diferentes etapas do crime, cada uma co,m sua dinâmica específica, como uma espécie de engrenagem digital.

    Ecossistema gamer como ponto de partida

    Os jogos, nesses casos, são usado como um dos primeiros elos da engrenagem. Depois, vêm redes mais organizadas, onde o jovem é exposto a conteúdos mais danosos, como tutoriais de crimes, comunidades extremistas, ou regras de comportamento e “ideologia” dos grupos.

    Segundo a pesquisadora da radicalização on-line e fundadora do Stop Hate Brasil, Michele Prado, “existem as plataformas chamamos de ‘beacon’, que são os faróis e é onde geralmente eles [os criminosos] vão aliciar e vão recrutar. São aquelas plataformas mais amplas, TikTok, Roblox, Instagram, Steam”, afirma.

    A partir desse primeiro contato, criminosos constroem conexões com as vítimas para, eventualmente, poder se aproveitar de uma fragilidade emocional ou introduzi-las a um grupo de cibercriminosos onde é disseminado conteúdo violento ou ilícito.

    O objetivo final é geralmente mover as vítimas para plataformas com menor chance de moderação, como as chamadas alt-techs ou fóruns criptografados, onde esse tipo de conteúdo pode ser compartilhado mais livremente.

    Em casos documentados por operações policiais, há relatos de adolescentes que foram cooptados para práticas de automutilação, controle psicológico, envio de imagens íntimas e outras formas de exploração.

    Crimes organizados como “eventos”

    Nos ambientes fechados, os chamados “eventos” também se tornam frequentes. Esse é o nome dado para transmissões ao vivo em que adolescentes praticam automutilação, exibem abusos ou cometem agressões a terceiros e até a animais.

    Neles, é comum a transmissão de “desafios”, que consistem em dinâmicas on-line com práticas como a do “chroming” -quando a vítima é induzida a aspirar desodorante até desmaiar -, ou do “blackout” – quando envolve sufocamento, entre outros.

    Lisandrea Colabuono, chefe do Núcleo de Operações e Articulações Digitais (Noad) da Polícia Civil de São Paulo, explica que esses “eventos” normalmente são anunciados antes de acontecer. “Como funciona? Eles anunciam: ‘se nós atingirmos 200, 300 seguidores aqui, a gente vai ter um evento’”.

    “O evento é desde um gato sendo morto ao vivo, um cachorro. A gente teve até cenas com coelho, com sapo, até alguém se mutilando ou uma menina sendo vítima de estupro virtual. Então, é tudo muito escancarado. É tudo muito aberto”, explica.

    Ela também relata uma situação marcante captada durante uma das investigações no Núcleo que coordena: “A gente tem outras panelas [grupos], por exemplo, que só maltratam animais. Teve um menino que foi numa ONG, adotou 30 gatos ao longo de um ano e todos ele mutilava”, conta.

    Outro caso identificado por Colabuono é de uma menina que acabou morrendo depois de fazer um “desafio” on-line. Segundo a delegada, a irmã da menina, imaginando que as redes sociais tivessem algo a ver com o caso, entrou no perfil da irmã, mas acabou sendo aliciada também.

    “Ela entrou no perfil da irmã e foi vítima também de tentativa de suicídio. Porque ele [o agressor] entrou na mente dela. Só que ela, a família conseguiu salvar”, afirma.

    A delegada também destaca a  lógica de hierarquização que faz parte desses grupos, e que exerce grande influência em como os criminosos operam. Segundo ela, a cada pessoa vitimada -seja por meio de influência à automutilação ou outro tipo de ilícito – é um degrau de ascensão.

    “Para eles [criminosos] isso tem muito valor. Ou seja, se eu conseguir fazer isso com alguém, eu subo na hierarquia, eu fico famoso ali dentro”, explica.

    Presença pulverizada

    Apesar do conhecimento sobre o uso variado de plataformas, a estratégia ainda se apresenta como um desafio para profissionais que atuam na área de combate ao cibercrime.

    Isso porque os crimes não se concentram em redes específicas, que tendem, inclusive, a ser colaborativas em investigações. Pelo contrário: passaram a se espalhar por espaços pequenos, muitos deles desconhecidos até mesmo por investigadores familiarizados com o ambiente virtual.

    “As big techs são uma ponta do problema. Mas tem aquilo que vão chamar de ‘micro techs’. Tem um monte de aplicativinho novo que vai aparecendo e os nossos jovens vão migrando. Tem coisa que tu nunca ouviu falar que eles usam. Tem todo o ecossistema gamer, onde eles se comunicam, atuam, interagem”, afirma o procurador de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Fábio Pereira.

    “Tem Zangie, tem Simplex, tem Batata, tem um monte de coisa. E a cada momento aparece uma coisa nova. Eles migram com muita facilidade. Eles são muito fluídos nesse ponto, com uma capacidade tecnológica muito maior do que a gente”, conclui.

    O reconhecimento do risco dentro dessas redes inicialmente voltadas para a diversão ou socialização já levou à proposição legislativas que podem alterar o cenário da presença de jovens nas redes.

    Um exemplo é o Projeto de Lei 5261/2020, de autoria do deputado Carlos Chiodini (MDB‑SC), que propõe impedir a livre troca de mensagens em jogos eletrônicos quando pelo menos um dos usuários for menor de 14 anos.

    Pelo texto, a comunicação só pode ocorrer via chat com textos pré‑definidos, como forma de evitar que criminosos se aproximem de crianças por meio de conversas aparentemente inocentes. Também haveria a remoção de exibição pública de dados pessoais como nome, idade e cidade de residência.

    A proposta pretende incluir essas restrições no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com o objetivo de evitar o aliciamento de menores. A medida, contudo, está com a tramitação travada, sem previsão de apreciação.