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    Emendas parlamentares e o voto: o poder do PP (por Gaudêncio Torquato)

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    Instrumento legítimo ou moeda de troca eleitoral, as emendas parlamentares se tornaram o principal elo entre Brasília e o eleitor — com efeitos preocupantes para a democracia.

    Cláudio Lembo, professor de Direito, político experiente e dono das sobrancelhas mais decorativas do país, tinha a verve afiada. Em uma conversa com um amigo de Araçatuba, tentou trazê-lo para seu partido:

    — Já se inscreveu em algum partido? — perguntou.

    — Não. Esperava as suas ordens — respondeu o interlocutor.

    Lembo sugeriu:

    — Então entre no PP.

    — No PT do Lula? — retrucou o amigo, fazendo-se de desentendido.

    Lembo, paciente, soletrou:

    — PP. P de partido e P de banco.

    A história, contada com humor e ironia, traduz bem a realidade política brasileira atual. O “P de banco” tornou-se o símbolo mais evidente das emendas parlamentares — instrumento que deputados e senadores usam para destinar recursos do orçamento federal a projetos em seus redutos eleitorais. Um mecanismo legítimo, sem dúvida, mas cada vez mais associado à troca de favores, ao clientelismo e ao desequilíbrio no jogo democrático.

    As emendas parlamentares se dividem em quatro tipos: individuais, de bancada, de comissão e de relator-geral (RP9). Estas últimas ganharam notoriedade no controverso “orçamento secreto”. Em tese, todas servem para atender demandas locais. Na prática, são ferramentas de influência política direta.

    Deputados e senadores que conseguem enviar verbas para construção de pontes, hospitais ou escolas, mesmo com dinheiro da União, acabam colhendo capital político em suas regiões. O eleitor, ao ver a obra, associa o benefício ao parlamentar — e não ao contribuinte, de onde, de fato, vêm os recursos. A recompensa? Voto. Prestígio. Reeleição.

    Segundo a Fundação Getúlio Vargas, parlamentares que mais destinam emendas aumentam em média 10% suas chances de reeleição. O Tribunal Superior Eleitoral confirma: mais de 80% dos deputados reeleitos em 2022 usaram as emendas como vitrine de campanha.

    O problema se agrava quando esse recurso se transforma em moeda de troca entre Executivo e Legislativo. Libera-se verba para quem vota com o governo. Premia-se a fidelidade, pune-se a oposição. Pior: candidatos com mais trânsito em Brasília acumulam vantagem sobre adversários locais, alimentando distorções na competição eleitoral.

    As emendas do relator (RP9), por exemplo, movimentaram cerca de R$ 36 bilhões entre 2020 e 2022. Muitas delas foram distribuídas sem transparência, o que gerou críticas severas de órgãos de controle e do Supremo Tribunal Federal. O ministro Flávio Dino, do STF, tem apontado a opacidade como uma das principais ameaças à legitimidade do sistema — especialmente nos casos em que os autores das emendas sequer eram identificados.

    Enquanto isso, a representação política no Brasil patina. Parlamentares acreditam que, com emendas, ganham visibilidade e ampliam suas bases eleitorais. Esquecem, no entanto, que boa parte da população enxerga nesse sistema um símbolo de corrupção e desigualdade.

    A indignação social cresce. Nas ruas e nas pesquisas, aumenta a percepção de que o Parlamento não representa os melhores cidadãos – como pregava o ideário aristotélico -, mas sim uma elite política que se serve do poder, em vez de servir ao povo. A recente aprovação, pela Câmara, do projeto que aumenta de 513 para 531 o número de deputados federais, é mais um exemplo da desconexão entre o Congresso e os anseios populares.

    O Senado, por sua vez, aprovou 25 emendas ao Projeto de Lei Complementar (PLP) 177/23, de autoria da deputada Dani Cunha (União-RJ), que segue agora para sanção presidencial. A medida deve valer a partir da legislatura de 2027.

    No fim, o saldo é amargo. As emendas parlamentares, quando utilizadas com responsabilidade, podem ser uma ferramenta importante de descentralização de recursos. Mas, na forma como têm sido operacionalizadas, tornam-se símbolo de clientelismo, opacidade e manutenção do poder a qualquer custo.

    Enquanto nossos representantes seguem preocupados com seus colégios eleitorais e os “P de banco”, cresce o fosso entre sociedade e instituições. E a descrença na política — já profunda — cava mais fundo a crise de representatividade no Brasil.

     

    Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor emérito da ECA-USP e consultor