O parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) ao Supremo Tribunal Federal (STF) negando a possibilidade de perdão judicial e sugerindo uma redução de pena no patamar mínimo de 1/3 pela colaboração premiada de Mauro Cid pode colocar em xeque o futuro do réu na carreira militar e a manutenção de seus benefícios como membro do Exército.
Mauro Cid é réu na trama golpista ao lado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), do general Braga Netto e outras cinco pessoas. Em alegações finais na segunda-feira (14/7), a PGR reiterou ao Supremo o pedido para condená-los por diversos crimes, inclusive golpe de Estado.
Ele atuou no processo como colaborador da investigação, delatando uma sequência de fatos investigados pela PF que envolviam o suposto plano de golpe que se desenrolou a partir de 2022. Em contrapartida, tem o direito a certos benefícios, como a possibilidade de redução de pena em caso de condenação.
Como mostrou a coluna, a Procuradoria citou supostas “omissões” de Cid em sua delação, e por isso, mesmo entendendo que seus depoimentos ajudaram na investigação, diz que ele não teria cumprido integralmente com seu dever de colaborador. Nesse sentido, sugeriu que a redução de pena concedida a ele deveria ser fixada no patamar mínimo de ⅓.
Uma das cláusulas no acordo de sua colaboração premiada era a possibilidade de perdão judicial ou uma pena menor que dois anos. O limite da pena era algo almejado por Cid por causa de sua carreira militar, já que oficiais podem ser considerados indignos para a função e perder a patente caso condenados a uma sentença superior a dois anos de reclusão.
A manutenção de seu posto, assim como dos benefícios da carreira militar, eram umas das prioridades de Cid ao firmar o acordo de colaboração premiada. Essa estratégia, contudo, pode estar sob risco.
Apesar da manifestação da PGR, cabe aos ministros do Supremo a palavra final sobre a pena de Cid e em quais termos serão aplicados os benefícios da colaboração premiada. Nesse caso, o colegiado responsável pela análise da ação pode acatar, ou não, os pedidos de Gonet.
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Tenente-coronel Mauro Cid
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Mauro Cid e o advogado César Bittencourt durante julgamento no STF
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Vinícius Schmidt/Metrópoles
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Cid foi acusado pela PGR por organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.
Especialistas em Direito Militar ouvidos pela coluna apontam para um cenário concreto de risco penal para o réu. Segundo a advogada Lorena Nascimento, advogada especialista em Direito Constitucional e membro da Comissão de Direito Militar da OAB/MG, se houver condenação em parte significativa das imputações, a pena pode superar dois anos, “o que já seria suficiente para a análise da perda de patente”.
A advogada avalia que o desfecho da situação de Cid ainda depende da avaliação do próprio Supremo, mas que devido às inúmeras imputações e o baixo desconto na pena sugerido pela Procuradoria, existe uma grande possibilidade de o militar ser julgado posteriormente pelo STM, visto à obrigatoriedade da abertura do processo para analisar se um oficial é digno ou não do posto em casos de penas superiores a dois anos de reclusão.
“Isso são conjecturas, porque tem que pensar em como um ministro [do STF] vai avaliar, sopesar provas e julgar. Então, estamos no campo das ideias. Mas, de toda forma, acredito que existe uma grande probabilidade de ele ter uma pena maior que dois anos e, com isso, ser julgado pelo STM”, afirmou à coluna.
Já o advogado Silvio Freitas, especialista em Direito Militar, também avalia que, diante das imputações a Mauro Cid pela PGR, e levando em conta outras condenações do Supremo em casos semelhantes, é plausível que a pena do ex-ajudante de ordens supere o patamar de dois anos.
A perda do posto e da patente, no entanto, não é automática. Para tanto, é necessário que o militar seja submetido a um julgamento no STM, tribunal que avalia se o oficial seria indigno de exercer o posto, com a consequente perda da patente.
O tema inclusive já foi discutido pela presidente do STM, a ministra Elizabeth Rocha, que suscitou a possibilidade de perda da patente pelo também réu na trama golpista, Jair Bolsonaro.
Há duas hipóteses para que um militar seja considerado indigno e perca o posto. O primeiro pode acontecer mesmo com uma condenação inferior a dois anos, e parte de dentro da Força à qual o militar pertence.
Nesse caso, como explica o historiador Carlos Fico, o procedimento se dá por meio de um Conselho de Justificação, um processo de natureza administrativa. “Isso passa pela mão do Comandante de Força [Exército, Marinha ou Aeronáutica]. Mas de qualquer forma, isso tem que seguir para o STM”.
Já quando a condenação é superior a dois anos, o processo tem início na chamada representação para declaração de indignidade e incompatibilidade para com o oficialato, que fica sob a responsabilidade do Procurador-Geral da Justiça Militar.
Em ambos os casos, a decisão final fica a cargo do STM.
Segundo Fico, no entanto, há a ressalva de que o militar não é julgado novamente pelos crimes aos quais eventualmente foi condenado, restando ao colegiado uma análise sob o prisma da ética e da moral do oficial.
“É muito mais grave para um militar, inclusive, essa segunda etapa do que a condenação porque consiste em uma avaliação grave de sua indignidade para ser um oficial […] É, digamos, mais preocupante simbolicamente para os militares. Uma coisa é você ser julgado pela justiça comum por supostamente ter cometido um crime. Agora, outra coisa é você ser julgado pelo seus próprios pares”, afirmou à coluna.
Para além de uma eventual perda de patente, o militar também está sujeito, a depender da avaliação do STM, à perda de remuneração e benefícios, como plano de saúde ou transferência para a reserva remunerada.
Silvio Freitas pontua também que a Lei de Pensões Militares permite que os seus dependentes possam se habilitar para receber a pensão militar, que será deixada por ele. É o que se chama de “morte ficta”, e o direito a esse recebimento fica condicionado a um processo administrativo junto ao comando da Força correspondente.
O advogado também cita a possibilidade de o militar ser reformado, caso o tribunal militar não considere que ele seja indigno da função.
“O plenário do Superior Tribunal Militar pode entender que o oficial, mesmo condenado à pena privativa de liberdade superior a dois anos, não seja considerado indigno, mas reformando-o no posto em que se encontra […] Assim, ele vai manter as prerrogativas do posto, mas não poderá retornar ao serviço ativo do Exército”, afirma.
Os especialistas lembram, no entanto, que uma eventual condenação não é sinônimo de perda de patente.
Segundo a advogada Lorena Nascimento, apesar de a legislação militar estabelecer que nos casos de condenações penais acima de dois anos é obrigatória a instauração de processo judicial militar para análise da compatibilidade do condenado com sua função, a abertura desse processo “não implica, por si só, na perda automática da patente”.
“A Constituição Federal determina que, nesses casos, o oficial será julgado por um tribunal militar, que decidirá se ele permanece apto a integrar as Forças Armadas. Portanto, existe margem de interpretação judicial e de análise de mérito quanto à indignidade, o que impede que se afirme categoricamente que toda pena superior a dois anos leva necessariamente à perda da patente”, afirmou à coluna.
Ela ainda lembra da hipótese de o militar ir para a reserva, o que só pode ocorrer quando a pena não ultrapassa os dois anos ou se o STM decidir pela manutenção da patente.
“Nessa hipótese, mesmo com antecedentes criminais, ele ainda poderia ser transferido para a reserva, desde que atendidos os demais requisitos legais. No entanto, se a condenação for superior a dois anos e o STM entender pela indignidade, a demissão será inevitável, e não haverá direito à reserva ou proventos”, conclui Nascimento.