Até recentemente Jair Bolsonaro era a grande liderança do campo da direita e o bolsonarismo sua principal força orgânica, capaz de encher as ruas com multidões. Esse capital político é coisa do passado. Hoje, está encurralado em um labirinto de crises judiciais, fragmentação interna e rejeição popular. A imagem do mito — como seus seguidores o aclamavam — foi substituída pela de um político que só pensa em seus interesses pessoais e nos de seu clã. Os brasileiros percebem isso, como revelou a última pesquisa Quaest, na qual sete em cada dez entrevistados avaliam que Eduardo Bolsonaro defende os interesses do pai e da família, e não os do Brasil.
O mito ficou nu diante das revelações dos diálogos em linguagem chula entre pai, filho e o pastor Silas Malafaia. Em vez de líder durão e carismático, que dizia colocar o Brasil acima de tudo, surge um personagem frágil, preocupado apenas com a possibilidade de condenação pelo STF e de longos anos de prisão. Bolsonaro deixou de ser o grande eleitor da direita, tornando-se um problema para os presidenciáveis do campo conservador. Antes disputavam espaço em seu palanque, agora buscam distância. Com isso, o capital político que lhe rendeu 49,1% dos votos válidos em 2022 erode dia após dia, apontando para uma crise semiterminal.
Não é ainda morte política definitiva, mas um enfraquecimento profundo, ainda que sustentado por um núcleo fiel de 13%. Esse encolhimento já redesenha o tabuleiro para 2026. E o isolamento tende a radicalizar o bolsonarismo, seja em atos de confronto institucional, em maior dependência de lideranças religiosas ou em episódios de violência difusa, que mantêm o ambiente político contaminado pelo medo e pela instabilidade.
Dois acontecimentos recentes catalisaram essa percepção. Primeiro, os diálogos divulgados pela Polícia Federal, que trouxeram à tona uma fala explosiva: “sem anistia, não tem negociação do tarifaço”. A declaração, que vincula um interesse pessoal (a busca de anistia) a uma questão de Estado (a negociação de tarifas com os EUA), reforça a imagem de um líder incapaz de separar o público do privado, disposto a instrumentalizar a agenda nacional para se beneficiar.
Além disso, o relatório da PF mostra fissuras profundas no núcleo duro bolsonarista. As conversas revelam um ex-presidente acuado diante dos rompantes do filho Eduardo e da influência de Malafaia sobre decisões políticas. A impressão que se tem é que o verdadeiro líder da ultradireita não é o ex-presidente, mas o pastor. Em um dos trechos mais duros, Eduardo chega a insultar o pai com palavrões, chamando-o de ingrato. A cena, digna de uma tragédia familiar, projeta ao eleitorado uma imagem de desorganização, ressentimento e perda de autoridade.
Se internamente o bolsonarismo exibe rachaduras, externamente sofre com a corrosão de sua imagem. A pesquisa Genial/Quaest divulgada em 21 de agosto é eloquente: 69% dos brasileiros acreditam que Eduardo Bolsonaro age por interesse próprio, e não em defesa do país; 65% avaliam que Jair Bolsonaro deveria desistir de concorrer em 2026 e apoiar outro candidato; apenas 28% consideram que os Bolsonaro agiram corretamente no caso das tarifas impostas pelos EUA.
Esses números sustentam a leitura do cientista político Felipe Nunes, CEO da Quaest: Bolsonaro tornou-se “tóxico”. Em outras palavras, deixou de ser ativo eleitoral para virar passivo político. O selo “bolsonarismo” ainda garante barulho, mobilização e um núcleo fiel, mas perdeu a capacidade de expansão. Nas eleições majoritárias, em que é preciso conquistar o eleitorado moderado, esse carimbo já não funciona como alavanca.
Com um agravante: a imagem do bolsonarismo como um movimento truculento, que ganhou visibilidade com a intentona de 8 de janeiro de 2023, foi reforçada pelo motim de parlamentares bolsonaristas no Congresso Nacional, quando, pela força, impediram o livre funcionamento de um dos Poderes da República.
O desafio da direita está precisamente aí: como se libertar dos grilhões que a prendem a Bolsonaro sem romper completamente com sua base? Há precedentes na política brasileira. A experiência histórica do PSDB é ilustrativa. Durante anos, a ultra direita antipetista, mesmo sem entusiasmo, votava de “nariz tapado” nos tucanos, por falta de alternativa. Os tucanos não faziam concessões aos valores dessa turma. Algo semelhante pode ocorrer em 2026: com Bolsonaro fragilizado e impedido de concorrer, o eleitorado de raiz bolsonarista tenderá a apoiar, ainda que com menos fervor, qualquer candidato de direita, sem que seja necessário fazer concessões que comprometam o compromisso democrático de um centro-direita moderado. A insistência em se confundir com o ex-presidente empurra candidatos ao gueto dos 13%, insuficiente para chegar ao Planalto.
Para viabilizar-se em 2026, será necessário que algum presidenciável se diferencie claramente do bolsonarismo — uma operação delicada de cirurgia política, que envolve herdar o voto “de necessidade” dos radicais e expandir-se em direção ao eleitorado moderado que rejeita a truculência. Tarefa que poderá ser conduzida por governadores em ascensão, parlamentares de perfil mais moderado ou outsiders que expressem uma direita institucional.
Nesse sentido, os áudios da PF e a pesquisa Quaest não são apenas fatos isolados, mas sintomas de um processo mais amplo: a perda de centralidade de Bolsonaro no campo conservador. Se antes a direita orbitava em torno dele, agora precisa decidir se continuará a ser satélite de uma liderança em colapso ou se ousará traçar uma rota autônoma. O julgamento da suposta tentativa de golpe, marcado para setembro no STF, promete acelerar esse processo. A exposição pública de denúncias, provas e debates no tribunal pode ampliar o desgaste e consolidar a imagem de Bolsonaro como liderança política em decadência, condenado à irrelevância ou mesmo à inelegibilidade.
O risco, para a direita, é a inércia. Permanecer atrelada a Bolsonaro, por medo de desagradar seu núcleo duro ou por uma mentalidade distorcida de “lealdade”, é insistir em uma marca corroída, incapaz de conquistar a maioria. A urgência é clara: libertar-se do bolsonarismo, redefinindo uma identidade conservadora mais institucional, menos beligerante e capaz de dialogar com o eleitorado de centro.
O bolsonarismo não está morto. O que se vê é um movimento que conserva alguma energia, mas perdeu a capacidade de expandir-se, isolado por seus próprios excessos. O impasse central é se a direita terá coragem de assumir uma nova identidade ou se seguirá seduzida por um líder em declínio. O tempo corre — e a direita terá de escolher.
Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação.