“É mais difícil projetar uma cadeira do que uma cidade”. Com essa frase impactante, Lucio Costa apresentou o móvel que fez para uma exposição da OCA, a galeria de arte e mobiliário que Sérgio Rodrigues criou no Rio de Janeiro dos anos modernos. Lucio chamou de “poltroninha” o mobiliário que, a se levar ao pé da letra, lhe deu mais trabalho do que inventar Brasília.
Se fosse feita de palavras, a poltrona seria um poema, e Brasília, um romance. Poemas exigem perfeição; o romance não consegue chegar a tanto em todas as suas muitas páginas. A poltrona-poema de Lucio Costa foi escrita em jacarandá maciço, com assento, encosto e braço revestidos em courvin preto. Nada nela é excessivo, nada é decorativo. Parece uma síntese da brasilidade colonial a que o arquiteto tanto admirava. A poltroninha se impõe em poucas palavras, como quem sabe que pode dizer tudo sem dizer muito. Pouca madeira, pouco courvin, entremeados de silêncio.
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Naqueles dias de lançamento da poltrona, Lucio estava inspirado – o que não era nenhuma novidade, o cara sabia escolher a palavra certa na multidão dos dicionários. Era um tempo, um longo tempo, em que tudo o que o arquiteto punha a mão virava notícia. O designer e também arquiteto Sérgio Rodrigues já tinha ocupado seu lugar no mundo das artes. Cinco anos antes, havia criado a poltrona mole, a mais famosa cadeira brasileira, queridinha de arquitetos, designers e parentes próximos.
Afiado como sempre, ao comentar sobre a galeria de Rodrigues, Lucio mandou ver: “Oca é casa indígena. A casa indígena é estruturada e pura. Nela, os utensílios, o equipamento, os petrechos e paramentos pessoais, em tudo se articulam e integram, com apuro formal, em função da vida”. E prossegue, “a simples escolha do nome define o sentido da obra realizada por Sérgio Rodrigues e seu grupo”. Um marqueteiro de primeira, esse Lucio.
A descrição que faz da oca indígena é quase uma formulação filosófica de como a vida teluricamente deveria ser. Tudo, nas casas das aldeias dos povos originários, tem uma função e ao mesmo tempo tem forma primorosa. Não há nada mais do que o necessário e o necessário pode ser bonito, fazer bem aos olhos e alegrar o espírito.
A casa indígena, tal qual Lucio a descreve, é um manifesto concreto do modo como os povos que desconheciam as tecnologias do dito mundo civilizado tinham dentro de si o sentimento estético (e ético) de juntar forma e função na medida exata das necessidades do corpo e do espírito. Como se Lucio fosse indígena ou um indígena fosse Lucio com inspiração colonial portuguesa – uma cadeira tão enxuta e verdadeira quanto uma igrejinha dos primeiros tempos da chegada dos portugueses ao Brasil.
A poltroninha de Lucio tem detalhes fundamentais. O encosto almofadado reclina-se levemente, o encosto dos braços é discretamente estofado e curvo e os pés da cadeira se afunilam suavemente ao tocar o chão, como se querendo voar.
Lucio Costa fez poucos móveis. Aqui em Brasília há pelo menos uma casa que tem o privilégio de ter um peça do arquiteto, uma mesa pequena, quase um aparador. Compõe o mobiliário de Clara e Chico Alvim, a professora e o poeta, preciosos e discretíssimos moradores de Brasília, a cidade que tem lastros de poesia e imperfeições de um romance.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.