MAIS

    Madureira e os nomes de lugares neste país de sonoras felicidades

    Por

    Desço do trem que corre nos trilhos da Central do Brasil e caio em Madureira-la-la-iá. Subo as escadas e ouço o camelô apregoar: “Em Madureira tem água pra beber, só um e cinquenta”. Ele talvez não saiba, mas está poetando tal como Tom e Vinicius – “água de beber, camará”.

    Madureira já nasceu poeta, gosta de cantar a si mesma com sua sonoridade que começa docemente em eme e termina em vibração de erres. Desde que Arlindo Cruz e Mauro Diniz compuseram Meu Lugar, o nome do bairro mais importante da zona norte carioca, berço do samba, se transformou num dos refrãos mais cantarolados nas rodas de samba deste Brasil brasileiro. Madureiraa-la-la-iá.

    Leia também

    Depois de atravessar de trem o corredor de favelas que acompanha a estrada de ferro, desço no coração do subúrbio carioca, o Mercadão de Madureira, onde “por uma pechincha você vai levar um dengo, um sonho pra quem quer sonhar”.

    O Mercadão é quase um desfile de escola de samba sem sair do lugar tamanha a imensidão de riquezas da religiosidade afro-brasileira nas lojas encadeadas em dois pavimentos. Tive de procurar um banquinho pra me sentar e organizar as ideias diante de tamanha força simbólica.

    4 imagensFechar modal.1 de 4

    Conceição Freitas/ Metrópoles2 de 4

    Conceição Freitas/ Metrópoles3 de 4

    Conceição Freitas/ Metrópoles4 de 4

    Conceição Freitas/ Metrópoles

    Madureira é sobrenome português e talvez venha de madureiro, lugar onde se armazenava frutas para que elas amadurecessem. Mas a riqueza da palavra não é só cultural e etimológica. Tem uma força fonética que é pura poesia, e ela não está sozinha.

    A toponímia brasileira é um tesouro de sonoridades poéticas. Tão poético que mereceu um belíssimo livro do desconcertante linguista Caetano W. Galindo. Chama-se As Cidades (Editora Fósforo, 2025). Depois de ter tido a proeza de transformar um livro de linguística em best-seller (A Língua em Pó), Galindo faz outra maravilhosa estripulia: um poema feito exclusivamente com nomes de municípios brasileiros tirados da lista do IBGE.

    O poema começa assim: “Acaiaca, Aceguá, Adustina, Afuá, Aiuaba, Aiuruoca, Alumínio” e corre em versos que seguem a ordem alfabética e sugerem, de imediato, um batuque ritmado feito apenas com topônimos brasileiros.

    Para compor o poema (que não tem Madureira, até porque Madureira não é um município e portanto não está na lista do IBGE), Galindo escolheu apenas nomes femininos em memória de As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino. No célebre romance do italiano, todas as 55 cidades imaginárias têm nomes de mulher. Exemplos que colhi a esmo: Anastácia, Ipásia, Despina, Maurília, Otávia, Zenobi, Zoé.

    Basta comparar a lista do poema de Galindo com a das cidades de Calvino, para perceber que, no quesito sonoridade, os nomes brasileiros ecoam longe como numa bateria de escola de samba na avenida. Mas também há deles que ecoam baixinho, quase num dengo, como nesse trecho: “Choró, Chorozinho, Chorrochó, Chuí, Chumpinguaia, Chuvisca, Cidreira, Cipó, Comercinho”.

    Maravilhas da língua portuguesa-brasileira que ficaram guardadas para sempre no nome das cidades Brasil adentro, até que um vereador qualquer decida trocar o nome antigo por uma versão mais comportada, ao estilo novo rico. Foi assim, por exemplo, com a goiana Galheiros que passou a se chamar Divinópolis.

    Aliás, Galindo, o linguista-poeta, evitou todas as cidades que têm os sufixos burgo, pólis e lândia, que nada têm de poético. Também deixou de lado as cidades com nomes de rios e de santos. Escolheu os nomes poeticamente, nos vãos entre o som, a rima, o ritmo, o sentido e aquilo que o deixasse “mais feliz”.

    De Axixá a Xanxerê, neste Brasil de sonoras felicidades.

    * Este texto representa as opiniões e ideias do autor.