A inveja faz mais mal para o invejoso do que para o invejado, como Giotto (1266-1337) retratou muito bem com a evocativa imagem da cobra saindo da boca da mulher. É uma força tão maligna que está no décimo e último mandamento da lei de Deus: “Não cobiçar as coisas alheias”. Nesses tempos de contatos virtuais excessivos, a caixa de comentários é o território mais gritante desse desejo de querer o que é do outro e que surge disfarçado de ódio.
Conheço a inveja desde quando peguei escondido uma santinha de papel de uma colega de escola e carreguei a culpa por milênios. A mais nítida expressão da raiva desejosa em mim, de que tenho consciência, aconteceu no tempo da faculdade. E a vítima foi uma de minhas melhores amigas. Era uma excursão de estudantes, bebemos, e a certa altura, na hora de entrar no ônibus para vir embora, já acomodada na minha poltrona, da janela vi a amiga se aproximando da porta e despejei impropérios num tresloucado surto de ódio. Eu lá de cima, ela lá embaixo.
Só muitos anos depois, entendi: a amiga estava de viagem marcada para Paris, ia passar as férias com parentes franceses. Naquele tempo, década de 1980, ir para “o estrangeiro”, como se dizia, era mais ou menos como ir sair da órbita da Terra, coisa para muito poucos. Nem eu mesma sabia que queria viajar para tão longe, mas minha inveja sabia e veio com tudo. Por sorte e espírito compassivo da amiga, tenho ela por perto até hoje.
A inveja é traiçoeira, nunca se revela, é craque na arte de se disfarçar. O invejoso, em geral, não percebe que está possuído pelo desejo de querer o que é do outro. É muito mais fácil acreditar que a inveja só vem de lá para cá, como naqueles letreiros nos carros: “Não me inveje, trabalhe”.
A inveja não escolhe a quem invejar: desconhecidos, colegas, amigos, namorados, maridos, irmãos, pais, mães, filhos. Ela está sempre pronta a se instalar até no mais insuspeito dos humanos. Não perguntei a doutor Freud, mas posso dizer por minha conta que a inveja é a face rabugenta do desejo.
Quando João Guimarães Rosa lançou o monumental Grande Sertão: Veredas, a bolha literária brasileira ficou inquieta. Teve escritor que torceu o nariz para a originalidade atordoante de Rosa e o acusou de ser acaciano, ou seja, de dizer obviedades. Coitado, o invejoso não deu conta de suportar a própria inveja, o que é muito comum.
É um exercício de coragem e humildade segurar a onda descontrolada da inveja e nisso o poeta Manuel Bandeira foi mestre. Depois de muito apropriadamente comparar Riobaldo a Macbeth, o poeta sertanejo ao poeta shakespeariano, e de perceber que Rosa tinha inventado uma linguagem, Bandeira admite: “O diabo é que depois de ler você a gente começa a se sentir e cantar eu sou pobre, pobre, obre, rama, rema, rema, ré”.
A inveja é um alerta vermelho do próprio desejo. Se você der conta de lidar com a desconfortável descoberta de que a raiva que está sentindo do outro não é nada mais nada menos que inveja, você vai conseguir identificar o que está desejando e tentar dar conta disso. Pelo menos comigo, é só quando me concentro naquilo que o invejado tem e eu também quero ter é que me livro da raiva invejosa.
É aí que o tal “não me inveje, trabalhe” faz sentido. Se o invejoso conseguir identificar a razão da inveja e partir para o ataque, não do invejado, mas em busca daquilo que no outro se deseja a inveja se esvai. Não importa que se esteja a anos-luz de ser uma Joana Guimarães Rosa ou uma Manuela Bandeira, o que mata a inveja, faz dela picadinho, é ir atrás do seu próprio canto, do seu próprio viver, na sua própria medida. Então, adeus, inveja, vai pousar noutro lugar que eu aqui me resolvo com meus próprios recursos.
Até que ela volte, e ela sempre volta e começa tudo de novo. (Quanto a se sentir invejado, isso é problema do invejoso, mas não custa fazer uma mandinga básica).
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.