Desde o fim da II Guerra Mundial, os Estados Unidos assumiram um papel sem paralelo na história contemporânea: o de arquitetos e garantidores de uma ordem internacional baseada em instituições multilaterais, economia de mercado, segurança coletiva e valores liberais. Não se tratava apenas de poder militar ou hegemonia econômica — embora ambos fossem expressivos. Tratava-se, sobretudo, da capacidade de oferecer ao mundo um projeto, uma promessa de estabilidade e progresso.
Foi essa promessa que deu origem à ONU, à OTAN, ao FMI, ao Banco Mundial e, mais tarde, à OMC. Com o Plano Marshall, os EUA ajudaram a reconstruir a Europa Ocidental. Com a Doutrina Truman e a criação da Aliança Atlântica, articularam a defesa comum diante da ameaça soviética. Com Bretton Woods, moldaram um sistema econômico global que, por décadas, favoreceu o crescimento e a cooperação entre nações. A vitória na Guerra Fria parecia consagrar esse modelo.
Particularmente porque a contraposição à economia de mercado – a estatização total, pedra angular do modelo soviético – perdeu a batalha tecnológica. A tese de Marx de que, na ordem capitalista, as forças produtivas estavam obstaculizadas em seu desenvolvimento pelas relações sociais de produção aconteceu, não no capitalismo, mas na sociedade socialista, numa ironia da história. De fato, enquanto na antiga União Soviética não se desenvolveu tecnologia para ofertar bens de consumo moderno, no mundo capitalista e ocidental as forças produtivas se desenvolviam extraordinariamente, por meio de novas revoluções industriais.
Ao final do Século XX – com a hecatombe do socialismo real – parecia que tínhamos chegado ao fim da história, como vaticinou Francis Fukuyama. De fato, a hegemonia absoluta dos Estados Unidos nos levou a um mundo unipolar. Portanto, a “história”, no sentido de luta entre grandes ideologias políticas rivais (como liberalismo, fascismo e comunismo), teria chegado ao fim. Nesse quadro, a democracia se afirmou como o grande valor vitorioso.
Mas no século XXI, os ventos começaram a mudar. A ascensão da China, a estagnação das instituições multilaterais e a multiplicação de crises — econômicas, climáticas, sanitárias e migratórias — colocaram em xeque a autoridade americana. Aqui outra ironia da história. A China deu passos para se transformar na segunda potência mundial, aderindo de forma decidida à economia de mercado e aos mecanismos multilaterais da ordem mundial criada no pós Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, até 2016, os Estados Unidos permaneciam como o polo de previsibilidade e liderança no mundo ocidental. Isso mudou com a eleição de Donald Trump.
Ao adotar o isolacionismo, questionar alianças históricas e sabotar os próprios organismos que os EUA haviam criado, Trump desferiu um golpe profundo — e talvez irreversível — na ordem liberal. Retirou seu país da UNESCO, da OMS, do Acordo de Paris e do pacto nuclear com o Irã. Bloqueou o funcionamento da OMC. Transformou o multilateralismo em sinônimo de fraqueza e tratou parceiros estratégicos com suspeita, quando não com hostilidade.
A visão regressista de Trump ao adotar uma política de “substituição de importações” por meio de medidas protecionistas não tem possibilidade de sucesso em mundo das cadeias produtivas globais.
A guerra comercial com a China foi conduzida sem coordenação com aliados. Pior: atingiu também parceiros históricos, como Canadá, União Europeia e Japão, sob a justificativa de proteger a “segurança nacional americana”. Na prática, disse ao mundo que cada um deveria cuidar de si — e, assim, plantou a semente da desconfiança.
O mundo aprendeu, com Trump, que até mesmo os pilares mais sólidos da política externa americana podiam ruir de uma hora para outra. Ele revelou que os EUA podem se tornar imprevisíveis. Mostrou que o compromisso com a ordem internacional pode ser interrompido por um ciclo eleitoral. E fez com que parceiros históricos começassem a se perguntar se deveriam buscar alternativas — como uma defesa europeia autônoma ou novas alianças regionais.
Mas o efeito mais corrosivo de sua volta ao poder não está apenas nas ações que toma, e sim no precedente que estabelece. Mesmo sabendo que Trump é, por definição, transitório, o mundo compreendeu que outros como ele poderão vir. A previsibilidade foi substituída pela dúvida. E a confiança, pela cautela. Hoje, nenhum parceiro estratégico pode fazer planos de longo prazo com os EUA sem considerar a possibilidade de um novo giro isolacionista ou autoritário num próximo ciclo eleitoral.
A liderança americana sempre foi uma construção política, baseada tanto em força quanto em credibilidade. E essa credibilidade está em colapso. Mais do que uma crise institucional, trata-se de um esgotamento de confiança. A consequência provável é o surgimento — ainda em gestação — de uma nova ordem mundial, mais fragmentada, mais instável e possivelmente menos democrática e menos liberal. Com a ascensão de potências como China e Índia, a consolidação de arranjos alternativos (como os BRICS) e o enfraquecimento das estruturas tradicionais do Ocidente, o mundo caminha para um período de transição.
Não se trata apenas de Trump. Seu retorno à cena política e a força que mantém em boa parte do eleitorado indicam que sua postura não foi um acidente, mas expressão de uma tendência como resposta a distorções geradas pela globalização: o nacionalismo ressentido, a rejeição ao multilateralismo e a descrença nas instituições.
Ninguém lidera o mundo por inércia. E os EUA, ao romperem com os próprios princípios que os sustentaram como potência confiável, abriram espaço para que outros disputem esse lugar — mesmo que com propostas de liderança muito diferentes. O que virá depois ainda é incerto.
O mundo, claro, ainda depende da liderança americana. Mas depende de uma liderança que inspire confiança, não temor. Que ofereça pontes, não muros. Que renove o compromisso com a democracia, a cooperação e a paz — valores que permitiram aos EUA, por décadas, exercer uma liderança reconhecida, ainda que contestada.
Recuperar essa posição exigirá mais do que alternância partidária. Exigirá uma autocrítica institucional, uma revalorização das alianças e um novo pacto com o mundo. O século XXI não aceitará lideranças por inércia. E tampouco tolerará a repetição de erros que já cobraram caro da credibilidade americana.
Uma coisa parece cada vez mais clara: o século XXI não terá um centro tão bem definido quanto o século XX. E isso muda tudo.
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Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação