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    A política está nos Reels e no TikTok (por Hubert Alquéres)

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    A política contemporânea já não é encenada apenas nos palanques, nos plenários ou nos telejornais. A proliferação dos vídeos curtos, em formato vertical, sinaliza uma transformação estrutural na mediação entre representantes e representados. É uma linguagem concebida para o celular — para ocupar a palma da mão e infiltrar-se na intimidade da nossa rotina. Assistimos ao político no ônibus, na fila do banco, durante as refeições — e, muitas vezes, no exato instante em que ele publica sua mensagem.

    A portabilidade e o imediatismo das plataformas instauraram uma nova era da presença pública: o político não apenas aparece, mas se insinua como presença constante.

    Pouco a pouco, esses vídeos vêm substituindo discursos, notas oficiais e entrevistas como formas privilegiadas de persuasão. O que antes era um recurso auxiliar de campanha tornou-se o principal veículo de disputa e construção narrativa.

    Plataformas como TikTok, Reels e aplicativos dedicados à ficção curta, como ReelShort, inauguraram um novo modo de narrar. Nele, não há espaço para longas explicações nem argumentações refinadas: o que conta é o impacto imediato, a narrativa clara, o personagem forte. Não se trata apenas de comunicação, mas de performance com estrutura dramatúrgica. E quem compreende isso, leva vantagem.

    Os políticos de sucesso da nova geração já assimilaram essa lógica. O deputado federal Nikolas Ferreira, por exemplo, constrói sua persona digital como a de um protagonista em luta: jovem, cristão, perseguido por um sistema supostamente hostil. Cada vídeo seu é um episódio fechado — com início, meio e fim — que o posiciona como herói moral diante de qualquer antagonista e, a seu modo, encena convicção, dramatiza a mensagem, descreve uma trajetória.

    À esquerda, figuras como Tabata Amaral e Érika Hilton também ocupam esse espaço. Tabata aposta numa linguagem racional, jovem e propositiva. Erika adota o enfrentamento simbólico como centro de sua atuação, com vídeos que denunciam, provocam e mobilizam. Mas o uso da dramaturgia ainda é mais tático do que estrutural: o vídeo serve à causa, mas não necessariamente constrói uma série narrativa com continuidade simbólica.

    O que diferencia os mais eficazes não é apenas o domínio da técnica, mas a compreensão de que o vídeo curto funciona como narrativa em série, com personagem, conflito, tensão e desfecho. Essa estrutura, herdada do melodrama e das ficções populares, foi transposta com força para o discurso político — e poucos perceberam sua potência.

    João Campos tem explorado com eficácia as possibilidades do vídeo curto, combinando leveza, bastidores calculados e uma estética que humaniza o gestor. Seus vídeos constroem uma narrativa de juventude e proximidade afetiva, com uma figura política afinada aos tempos digitais.

    Por trás das cenas que aparentam casualidade ou autenticidade, há um trabalho sofisticado de roteirização, edição e curadoria realizado por assessorias de comunicação, agências especializadas e estrategistas digitais. É onde se alia expertise técnica a uma compreensão aguda das linguagens emocionais que mobilizam o público. Trata-se de uma profissionalização da estética da proximidade, onde o político se apresenta como alguém comum — mas por meio de mecanismos altamente calibrados de construção narrativa. Essa mediação profissional da espontaneidade transforma o político em personagem serializado, atualizável em tempo real conforme o engajamento do público e a dinâmica das redes.

    Os presidenciáveis Tarcísio de Freitas, Ratinho Jr. e Eduardo Leite também já entraram nessa nova era com estratégias de comunicação articuladas com as novas ferramentas de transmitir suas mensagens de forma rápida, curta e eficaz. É previsível portanto que elas venham a ter papel relevante – para não dizer preponderante – como meio dos candidatos se comunicarem com larga faixa do eleitorado.

    Mas nem toda dramaturgia é virtuosa — e nem toda performance é inofensiva. Esse novo ecossistema não está isento de riscos. A tentação de transformar a política em puro espetáculo — com protagonistas fabricados, vilões caricatos e clímax artificiais — é grande. A linguagem emocional e fragmentada do vídeo curto favorece simplificações, maniqueísmos e versões distorcidas da realidade. A fronteira entre engajamento legítimo e manipulação é tênue — e a sedução do populismo teatral, real.

    Em diversos contextos, a estética do vídeo curto já foi instrumentalizada para difundir desinformação, reforçar polarizações ou mascarar decisões impopulares. Exemplo disso são casos como o de Nayib Bukele, em El Salvador, que combina vídeos com estética jovem e linguagem de influenciador para sustentar medidas autoritárias.

    A ética política, nesse contexto, não se mede apenas pelo conteúdo, mas pelo uso responsável da linguagem. Enganar, omitir ou explorar fatos em busca de likes é mais fácil do que nunca — e mais perigoso também. A arte de comunicar, quando perverte o conteúdo em função da forma, pode converter a política em mercadoria — vendida ao preço da verdade.

    Isso não significa rejeitar a linguagem do tempo mas disputá-la com inteligência, propósito e integridade. É possível narrar com emoção, sem mentir. É possível construir personagens políticos com profundidade sem recorrer à caricatura. O desafio é formar lideranças que compreendam a linguagem do agora sem trair os princípios que sustentam a política como prática pública.

    O vídeo curto é, hoje, uma das formas mais poderosas de mediação. Ele pode ser usado para empobrecer o debate público — ou para traduzi-lo com força. Pode capturar corações com verdades simples — ou iludir consciências com slogans falsos.

    A estética do vídeo curto não é apenas um novo formato. É uma forma de poder. E como toda linguagem de massa, pode ser instrumento de libertação ou de manipulação. A diferença estará, sempre, na intenção, na consciência ética e na responsabilidade política de quem a produz — e na vigilância crítica de quem a consome.

     

    Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação e vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro.