O STF conseguiu a façanha de fazer a imprensa crer que se defende a Constituição atropelando a Constituição.
Desde que o tribunal abriu o primeiro dos inquéritos sigilosos, o do fim do mundo, e Alexandre de Moraes foi designado para conduzi-lo, o país assistiu a atos de censura, à relativização da liberdade de expressão, a triagens ideológicas, a pescas probatórias, a buscas e apreensões arbitrárias, a prisões preventivas abusivas e a penas excessivas.
Os jornais vez por outra resmungam, mas em geral aprovam, enquanto boa parte dos brasileiros aplaude o STF porque os perseguidos lhes são ideologicamente antípodas, e ninguém enxerga as consequências dos transbordamentos, perigosas para todos.
É a receita de sempre — aos amigos, a lei; aos inimigos, os rigores da lei —, mas em abrangência e intensidade jamais vistas em períodos democráticos.
Os demais ministros chancelam todas as decisões de Alexandre de Moraes, seja por convicção ou por temor, e se tem, como resultado, um tribunal que fere o Estado Democrático de Direito para condenar quem cogitou feri-lo.
É como se a Constituição não fosse suficiente para combater quem a ameaça, e para justificar o injustificável, as medidas de exceção, invocam-se conceitos que, jogados no circo midiático, distraem os espectadores.
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Um deles é o do paradoxo da tolerância, do filósofo Karl Popper, segundo o qual é necessário ser intolerante com a intolerância para a manutenção de uma sociedade tolerante.
Cita-se abundantemente o caso da República de Weimar, que, por ser tolerante em excesso, teria deixado que o nazismo florescesse livremente na Alemanha.
Só que o Brasil da Constituição de 1988 não é a Alemanha da República de Weimar, o bolsonarismo não é mais do que uma boçalidade tropical e o exemplo não condiz com a história.
É uma inverdade que a República de Weimar tenha sido espaço seguro para a propagação do nazismo, mostra o historiador dinamarquês Jacob Mchamgama, no livro Free Speech.
Além de ter condenado Hitler à prisão, depois do Putsch da Cervejaria, o líder nazista foi proibido de fazer discursos públicos em vários estados alemães.
Ao todo, 284 jornais tiveram a sua publicação suspensa por decisão governamental, baseada em lei de exceção, entre 1930 e 1932: 99 nazistas, 77 comunistas e 43 de outras facções direitistas.
A censura, no entanto, teve o efeito de impulsionar a fama e a popularidade de Hitler, nota Mchamgama, alimentando a propaganda de Goebbels, que apresentava o líder nazista como vítima de ilegalidades.
“Cartazes retratavam um Hitler amordaçado, como se fosse um mártir da repressão do sistema, emoldurado por dizeres como ‘Os bandidos podem falar em qualquer lugar da Alemanha, mas Hitler é proibido’. O apelo oportunista, seletivo e profundamente hipócrita de Goebbels à liberdade de expressão apenas quando servia à própria agenda — ainda uma tática familiar entre os populistas de direita hoje — também era uma tática padrão quando publicações nazistas eram alvo das autoridades”, escreve o autor de Free Speech.
A República de Weimar não deveria, portanto, ser citada como exemplo pelos intolerantes do STF ou de fora dele. Não apenas por sua especificidade histórica, para a qual foi determinante a humilhação alemã imposta pelos vencedores da Primeira Guerra Mundial, como também por ser ilustração do que não é recomendável fazer em nome da defesa da democracia.
No paradoxo brasileiro, Jair Bolsonaro será condenado por pensar em dar um golpe, ao final de um processo em que direitos foram ignorados e no qual as circunstâncias substituíram os fatos.
O bolsonarismo terá, assim, um grande mártir a ser vendido aos eleitores, e o STF se afirmará ainda mais como Poder incontrastável. Quanto aos brasileiros, vai lhes restar o absurdo lógico, mas normalizado, de que é necessário tomar medidas inconstitucionais para defender a Constituição.