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    Martírio de Charlie Kirk dá jeito a Trump (por Pedro Guerreiro)

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    Os fatos. O primeiro de todos: Charlie Kirk, um influentíssimo e bem financiado ativista ultraconservador, um eficaz e proselitista embaixador da nova direita radical e do trumpismo junto da juventude, nas escolas e nas redes sociais, foi assassinado a tiro ao fazer uso da palavra, numa universidade no Utah, no passado dia 10. Foi vítima de um crime repulsivo para quem preza sociedades livres e democráticas, onde se possa dizer o que se pensa, mesmo que se pense disparates. Não devia ser necessário fazer este ponto prévio, mas aqui estamos.

    A condenação do assassinato de Kirk não tem de se tornar num exercício hagiográfico. Entre os tais disparates que Kirk tinha direito a pensar e a dizer, dentro da extraordinária latitude de exercício de liberdade de expressão que os Estados Unidos costumavam permitir, estavam várias opiniões criticáveis por muitos.

    Para Kirk, e perante a longa sucessão de tiroteios em escolas e outros espaços públicos nos EUA, “algumas mortes todos os anos” eram “o custo” justo do direito à posse de armas. Era crítico do marco legislativo de 1964 que pôs termo à discriminação legal de pessoas afro-americanas, achando que tinha sido sobretudo um “ataque” contra os americanos brancos, e admitia que ficava nervoso de cada vez que apanhava um piloto negro no avião, desconfiando por princípio das suas qualificações.

    Os judeus, dizia Kirk, controlavam “tudo” e eram os responsáveis pela “grande substituição” demográfica que denunciava (leia-se: pelo fato de os EUA serem cada vez mais diversos e menos brancos e anglo-saxónicos, uma evolução que considerava nociva; era contudo um apoiante de Benjamin Netanyahu. Dizia-se um feroz defensor da liberdade de expressão, mas a sua organização juvenil, a Turning Point USA, fazia listas de professores conotados com causas sociais ou de esquerda, incentivando boicotes e despedimentos.

    Uma coisa não justifica outra. Oferece-lhe contexto, contudo. O presumível autor do crime, Tyler Robinson (e diz-nos sobretudo o governador republicano local, Spencer Cox, figura sóbria ao lado do desvario comunicacional do FBI e da Administração Trump), odiaria Kirk e o que este defendia. Terá passado por um processo recente de radicalização política, que o afastou dos ideais da sua família conservadora, e manteria uma relação com uma pessoa em processo de transição de gênero (que Cox, novamente, faz questão de ressalvar que está “chocada” com o crime e que tem sido “muito cooperante” com as autoridades), colocando-o nos antípodas das posições transfóbicas de Kirk.

    Quando ainda falta saber bastante sobre o presumível homicida, que se mantém em silêncio, e sobre os seus motivos, o pouco que se conhece, o tal contexto, é suficiente para traçar um cenário plausível de violência política.

    A análise

    É tentador, e relativamente fácil, colocar Robinson e a sua ação num dos lados do espectro do extremismo político, à esquerda, num pólo aparentemente oposto ao de Kirk. Há, no entanto, uma dimensão sincretista e niilista visível nas inscrições que o atirador desenhou nos cartuchos das balas que foram encontradas na cena do crime, que é semelhante à que se lia nos escritos deixados por Robin Westman, que matou duas crianças numa igreja do Minnesota em agosto, e que encaixa também no pouquíssimo que se sabe da vida de Thomas Matthew Crooks, o jovem que tentou matar Donald Trump em julho de 2024, e que nos exige cautela.

    Crooks, que odiaria Trump, tinha escrito mensagens xenófobas e anti-semitas em fóruns online. Westman, que se encontrava num processo de transição de género, tanto escreveu “morte a Trump” como “seis milhões não foi suficiente”, e tinha uma aparente obsessão com extremistas sérvios e o massacre anti-muçulmano de Christchurch. Robinson tanto gravou inscrições anti-fascistas como escreveu uma piada homofóbica nos cartuchos.

    No que acreditavam afinal os três? Deixam para trás um puzzle mais complexo para montar do que as pistas claras de outros atiradores. Mesmo que Robinson e Crooks sejam autores de actos de violência contra figuras republicanas, de direita, e que Westman tenha atacado crianças cristãs, a sua motivação exacta é nebulosa e suscita interrogações sobre o papel do tal niilismo que parece reinar nas subcaves da Internet.

    Outro exemplo ainda: o de Nikita Casap, de 17 anos, detido em Março no Wisconsin, que assassinou os pais e que queria matar Trump para “acelerar o colapso” da sociedade norte-americana. Seguia a Ordem dos Nove Ângulos, um grupo extremista que funde crenças pagãs e nazis, e que pertence a uma constelação de organizações como a 764, bastante mais recente e violenta.

    O que aconteceu no Utah, tal como o que aconteceu no comício de Trump na Pensilvânia, no ano passado, pode por isso ser bastante mais complexo do que é imediatamente aparente, e pode ter mais a ver com aquilo a que Spencer Cox, ele uma vez mais, apontou o dedo no dia seguinte ao assassinato de Kirk: ao “cancro” das redes sociais e à violência extrema das imagens e dos escritos que circulam na internet, os quais “não temos sequer capacidade biológica de processar”, como disse o governador republicano, e que parecem ter um impacto particularmente perigoso em jovens socialmente isolados, psicologicamente fragilizados e com fácil acesso a armas.

    Nesse sentido, será Kirk tão diferente das outras vítimas cujas mortes o ativista disse serem o preço a pagar pela liberdade de posse de arma?

    Mas mesmo antes de haver um suspeito detido, um rosto e um nome a procurar, Trump já tinha uma narrativa para a morte de Kirk e um guião das consequências. Kirk tinha sido morto por alguém incentivado pelos “radicais lunáticos de esquerda” que equiparam os republicanos aos “nazis”. Dava voz ao que, minutos após o atentado, se dizia nas franjas mais radicais do trumpismo, de Steve Bannon a Laura Loomer, do proscrito Alex Jones ao atual rosto do horário nobre da Fox News, Jesse Waters: que os EUA estão agora em “guerra” e que a direita, com o apoio do aparelho do Estado, tem um pretexto e uma oportunidade para perseguir e punir a esquerda.

    A reação de Trump, disse Barack Obama, aproveitando para elogiar Cox, afasta-se dos exemplos passados de moderação presidencial (após o 11 de Setembro, o republicano George W. Bush fez questão de dizer que os EUA não estavam “em guerra contra o islão”). O Presidente é um dos responsáveis pelo atual ambiente de polarização e radicalização ao “chamar adversários políticos de vermes, de inimigos que têm de ser destruídos”, acusou o democrata. Trump, alertou Obama, aproxima agora o país de “uma crise política de um tipo que nunca vimos”. Em resposta, a Casa Branca disse que era Obama precisamente “o arquiteto da divisão política atual”.

    O que tem acontecido nos últimos dias, desde despedimentos de professores e jornalistas por comentários (não necessariamente desrespeitosos) sobre a morte de Kirk à elaboração de listas públicas com dezenas de milhares de outros nomes a demitir e ostracizar, ou à primeira emissão póstuma do programa de Charlie Kirk, conduzida pelo vice-presidente J.D. Vance, onde Stephen Miller, conselheiro presidencial, prometeu “usar todos os recursos disponíveis dos departamentos de Justiça e Segurança Interna, e de todo o Governo, para identificar, desarticular, desmantelar e destruir” organizações ditas “terroristas” de esquerda, é mais um exemplo da instrumentalização de crises reais ou imaginárias por parte da Administração Trump para executar um projeto político de tendência autoritária.

    Este guião já tinha sido seguido nos últimos meses. O pretexto do combate ao antisemitismo serviu para a Administração Trump tomar controle de parte do ensino superior e para deter ativistas pró-palestinos. A desculpa do combate ao crime colocou militares nas ruas de cidades sob gestão democrata. Supostos excessos esquerdistas e fábulas sobre fraudes financeiras levaram ao despedimento de milhares de funcionários públicos, ao fim de décadas de ajuda externa, da autonomia dos museus e bibliotecas, ou do financiamento da rádio pública. Os alegados abusos dos parceiros internacionais deram azo a um reordenamento geopolítico cujos efeitos ainda são imprevisíveis.

    Também são imprevisíveis os efeitos da “purga” que se desenha após a morte de Kirk. Mas são potencialmente mais graves, pelo menos no plano interno. A frequência da palavra “guerra” e os alertas de ex-presidentes e das últimas figuras lúcidas do Partido Republicano deviam alarmar a Casa Branca. Não há, contudo, desta vez, adultos na Sala Oval.

     

    (Transcrito do PÚBLICO)