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    Pensas que são todos como tu? (por Miguel Esteves Cardoso)

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    Estávamos a falar dos gatos do pátio e, de repente, reparei que ele estava a fazer as mesmas considerações que noutra altura tinha feito acerca dos nossos vizinhos humanos.

    Pus-me a ouvir atentamente e, quando começou a discutir a estratégia de uma gata recém-chegada, que ora é feroz, ora é delicodoce (ainda não sabe qual é a atitude mais eficaz), vislumbrei o mesmo pensamento geoestratégico que ele usa para falar da Ucrânia e do Médio Oriente.

    Cada um de nós pode, de facto, viver numa bolha (os que têm sorte), mas fala-se menos numa qualidade mais antiga que todos temos: somos projetores.

    Pensamos que estamos a falar dos vizinhos, sejam gatos ou pessoas, mas estamos a falar de nós, porque projetamos os nossos medos e desejos, os nossos segredos, as nossas preguiças.

    Tanto faz estarmos a falar de futebol ou de política: projetamos para aqueles que não conhecemos de parte nenhuma os preconceitos que conhecemos de ginjeira.

    Parece que estamos a falar das relações entre estranhos, mas estamos apenas a projetar — em grande, num écran luminoso — a maneira como nos relacionamos com os outros, e a maneira como achamos que os outros se relacionam entre eles.

    Por isso é que é tão valiosa aquela velha frase que estamos sempre a ouvir: “Pensas que são todos como tu?” Sim, pensamos. É terrível, claro, mas, por outro lado, é maravilhoso, porque nos permite perceber melhor o que move cada pessoa.

    Basta desviar a conversa para um campo em que o nosso interlocutor não tenha medo de se revelar — a relação de forças entre os cães da vizinhança — e prestar atenção.

    Somos todos projetores: o tema não interessa. Parece que estão a falar de rissóis ou de chanatas? Isso é só à superfície. Isso é só para disfarçar. Isso é só para afastar os preguiçosos e os psicopatas.

    O que eles estão a fazer é a mostrar a alma, a mostrar os temores e as falsas certezas, as vaidades e as virtudes, os podres e as grandes qualidades. Projetemo-nos à vontade!

     

    (Transcrito do PÚBLICO)