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    O jornalista tímido que lotou uma igreja e virou totem da democracia

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    O jornalista Vladimir Herzog é espécie de totem da luta pela democracia no Brasil. Neste final de outubro, completam-se 50 anos do assassinato de Vlado, torturado até a morte no tenebroso prédio do Doi-Codi na Rua Tutóia, 921, na cidade de São Paulo.

    Era uma sexta-feira, fim da tarde, quando militares à paisana foram até as instalações da TV Cultura querendo levar o chefe do telejornalismo para depor. Combinou-se de que ele iria no dia seguinte e ele foi, crente de que voltaria para casa na sequência.

    No fim daquele sábado, 25 de outubro, a mulher de Vlado, Clarice, foi informada de que o marido havia “se suicidado” nas dependências do Doi-Codi, onde muitos foram torturados, outros desapareceram e alguns foram mortos.

    O II Exército, que comandava o Doi-Codi, apresentou uma foto com a imagem de Vlado morto, com o pescoço amarrado num cinto de pano, pendurado na grade da janela, com os joelhos dobrados no chão, a boca fechada. A mais leiga das criaturas veria que aquela foto era armação.

    Vlado era de família judia. Nascido em Osijek, na então Iugoslávia, atual Croácia, teve de fugir do país com a família para escapar da perseguição nazista.

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    Passaram por um campo de refugiados, foram depois para a Itália e de lá vieram para o Brasil. O menino Vlado terminou os estudos primários em São Paulo. Foi colega de classe de um garoto de feições nipônicas que viria a ser um arquiteto moderno consagrado, Ruy Ohtake, que se lembrava de Vlado como um menino tímido que não gostava muito de se alimentar.

    Vlado se formou em Filosofia pela Universidade de São Paulo e foi trabalhar como jornalista. Começou como estagiário no Estadão, onde, um ano depois, em 1960, já fazia parte da equipe dos enviados especiais à inauguração da nova capital do Brasil. A cobertura mereceu o Prêmio Esso regional.

    O jornalista croata naturalizado brasileiro passou por várias redações de TV, revista e jornal – como costumava acontecer no jornalismo da época.

    Casou-se com Clarice, colega do curso de Filosofia. E viveu um tempo, nos anos 1960, em Londres, trabalhando na redação da BBC. Seus dois filhos, Ivo e André, nasceram londrinos.

    Muito ligado ao cinema, fez um documentário curta-metragem, Marimbás, sobre as pessoas que viviam das sobras da pesca diária dos pescadores do Posto 6, em Copacabana. Também participou do roteiro de Doramundo, longa-metragem mais tarde filmado por João Batista de Andrade.

    Vlado já tinha passado por várias redações, tinha sido professor de jornalismo da USP e da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado). Gostava mesmo era de jornalismo cultural, de crítica de cinema em especial. Na tarde em que foi procurado na TV Cultura, Vlado estava entrando em estúdio para editar o jornal da noite.

    Quando chegou ao Doi-Codi, encontrou dois outros jornalistas, George Duque Estrada e Rodolfo Konder. Os agentes queriam saber da ligação deles com o Partido Comunista Brasileiro, o Partidão. Vlado foi levado para uma sala separada – todos os três estavam encapuzados.

    Duque Estrada e Konder passaram a ouvir os gritos de Vlado, que logo se transformaram em urros, abafados por um rádio em volume muito alto.

    Depois, como eles relatam no documentário Vlado – 30 anos depois, de João Batista de Andrade – pairou um estranho silêncio. O rádio foi desligado, os gritos cessaram, nenhuma voz, nenhum movimento. Os dois então foram retirados da sala e colocados num outro local, mais distante.

    Vlado estava morto. Aos 38 anos. Uma semana depois, em 31 de outubro de 1975, 8 mil pessoas lotaram a Catedral da Sé, em São Paulo, e transbordaram para a praça. O histórico culto ecumênico, celebrado pelo arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo
    pastor presbiteriano Jaime Wright, atraiu à Igreja Católica gente de todas as religiões e até sem religião, mesmo cercados por 500 policiais
    posicionados nos arredores da igreja.

    “O ar estava tão tenso que podia ser cortado com uma faca”, relembrou o jornalista Juca Kfouri, que esteve na celebração de 1975 e voltou à Sé no último dia 25/10 para novo ato ecumênico em memória dos 50 anos da morte de Vlado.

    Embora a Justiça tenha decidido que o Estado foi responsável pela morte de Vlado, nenhum de seus algozes foi identificado. Em julho de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos publicou a condenação do estado brasileiro pela “falta de investigação, julgamento e punição aos responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog”.

    Valdo dá nome ao Instituto Vladimir Herzog, de educação em direitos humanos, jornalismo e liberdade de expressão. Vlado é nome de um
    importante prêmio jornalístico. E a imagem do corpo dele dependurado é um aviso sobre os riscos que todos nós corremos quando se perde a
    democracia.

    * Este texto representa as opiniões e ideias do autor.