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    A falácia da guerra urbana

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    Nenhum regime democrático sobrevive à ocupação de seus territórios, seja em Roraima, seja no Rio de Janeiro, por facções armadas ligados ao crime organizado que submetem famílias e trabalhadores ao terror e à opressão, e por milícias ligadas à direita.

    A democracia também não sobrevive à ocupação de cargos no Legislativo e no Executivo por organizações criminosas, como vem ocorrendo no país, com a infiltração crescente na política e no sistema empresarial e financeiro. É hora de dar um basta, antes que seja tarde demais.

    Sob a liderança do despreparado governador Cláudio Castro, o massacre que as polícias do Rio de Janeiro promoveram durante a megaoperação nos complexos do Alemão e da Penha mostrou tudo aquilo que, nos últimos 30 ou 40 anos, revelou-se ineficiente na segurança pública.

    O balanço é trágico, com pelo menos 132 pessoas mortas, um bloqueio territorial descoordenado, uma cidade em colapso, quatro vidas de policiais foram perdidas, sendo dois policiais civis e dois militares, e uma facção criminosa que sobreviverá sem grandes arranhões com as perdas dos supostos bandidos mortos (30 deles não tinham antecedentes criminais e não se sabe em que condições foram mortos, se em confronto ou se executados).

    Com essa operação, o coração do Comando Vermelho (CV), principal facção criminosa do Rio, não é atingido, o pânico coletivo só aumenta em contextos assim e, ao contrário, se dissemina a percepção generalizada de insegurança, expõe policiais e população a um risco desnecessário, amplia a desconfiança de moradores de favelas e periferias sobre agentes do Estado, e não se desarticula o tráfico de drogas nem se recupera o território.

    Eleições de 2026

    Em contrapartida, o espetáculo bélico oferece uma enorme contribuição a líderes como Castro: sacia a sede de violência da extrema-direita, inspira o sentimento de vingança em uma parte da população que, legitimamente, se sente amedrontada (um medo que é justamente instrumentalizado pela violência estatal), e alimenta a narrativa político-eleitoral para 2026, especialmente bem-vinda num momento em que Castro, no Rio, e os governadores presidenciáveis da direita, no plano nacional, estão enfraquecidos.

    O oportunismo foi imediato. Primeiro, o governador tentou culpabilizar o governo federal. Declarou que o Rio está “sozinho nessa guerra”, mas no decorrer do dia suas declarações foram sendo desmentidas pelos fatos – até o anúncio de um escritório emergencial conjunto de combate ao crime, unindo o governo estadual e o Ministério da Justiça.

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    Mas é como disse o coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública: a operação foi mal executada, mal comandada e mal controlada, e nem uma intervenção federal na segurança do Rio nem uma decretação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) teria eficácia para resolver o problema no Estado. Tampouco a chamada PEC da Segurança evitaria a operação trágica promovida por Castro.

    Depois, os governadores – muitos deles pré-candidatos – se reuniram numa peça com cheiro de marquetagem chamada Consórcio pela Paz. Pois o que os pacificadores querem mesmo é deflagrar a guerra eleitoral de 2026, seguir dominando a agenda da extrema-direita e criar condições para tentar desestabilizar o país e favorecer eventual intervenção externa.

    Um dos efeitos mais graves da operação é oferecer argumentos a eles para tentar caracterizar uma situação de caos de modo a enquadrar facções criminosas como organizações terroristas. A lógica do “narcoterrorismo” é passar a tratar a segurança pública com a lógica da guerra interna.

    Essa definição abre caminho, por exemplo, para que as agências de segurança dos EUA tratem o CV e similares como “ameaça à segurança nacional” e utilizem instrumentos de contraterrorismo, como interceptações, ligações com iniciativa militar ou forças especiais. Os “patriotas” bolsonaristas agradecem.

    Milícias

    E está no bolsonarismo um dos grandes problemas do que se viu no Rio. Há bastante tempo se aponta a sua relação com as milícias no estado. Do mesmo modo, há muito se sabe que o CV tem ainda muito domínio e controle de várias regiões do Rio, mantendo uma competição com as milícias no campo criminal, comercial e financeiro. Essa conjugação de interesses precisa ser investigada e descortinada.

    Tenho insistido, diante de outras chacinas e episódios de ação policial ultra-violenta em outros estados, como São Paulo, que a pura e simples eliminação travestida de política pública substitui prevenção, inteligência e presença estatal por uma guerra que não reduz o tráfico, não interrompe o aliciamento de jovens, nem devolve cidadania às comunidades.

    É a falência estratégica da segurança, com raízes na herança dos “esquadrões da morte”, transmutada em milícias que se incrustam no aparelho estatal. E, como a própria história do Rio mostra, onde não há inteligência nem controle civil sobre as polícias, sobram cooptação e politização, e chega-se às milícias.

    A cultura do “inimigo interno” deforma a carreira policial, aproxima agentes de redes ilícitas e embaralha a linha entre lei e crime. O resultado são banhos de sangue sem efeito direto contra as estruturas de comando do crime organizado.

    Reconhecer tudo isso não significa, porém, ignorar o tamanho do problema e da própria violência operada pelas facções criminosas. Ao contrário, é preciso falar com todas as letras dos crimes violentos, das máfias urbanas, das facções cruéis que submetem inocentes ao seu jugo.

    E, se é verdade que a direita aposta num modelo que já mostrou sua ineficácia, se é verdade que há vínculos mal explicados entre os interesses da extrema-direita bolsonarista e das milícias no combate a facções criminosas como o CV, também é verdade que a esquerda e as forças progressistas em geral precisam mudar sua abordagem em relação ao tema.

    É o que o governo Lula vem fazendo, naquilo que lhe cabe: propor nova estrutura de integração entre a União e os estados, trabalhar contra o problema nas fronteiras e nos vínculos transnacionais que sustentam o crime organizado e dar apoio aos governos estaduais, que têm a responsabilidade pela condução da segurança pública. Suficiente? Ainda não, mas é um caminho inicial para mostrar ao país que é possível endurecer o combate ao crime sem apelar para a falácia do teatro de guerra urbana, que só interessa aos sanguinários e à extrema-direita que vende a alma para os EUA.

    Já está na hora da criação do Ministério da Segurança Pública, para mostrar que essa agenda é, de fato, uma prioridade. A lista de mudanças adicionais é vasta: reformar o sistema penitenciário, hoje uma usina de crime; promover uma reforma das polícias, que garanta a profissionalização das corporações, o aperfeiçoamento dos treinamentos e da qualificação das investigações, entre outros avanços; restringir ainda mais as regras relacionadas aos Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs), cuja facilitação excessiva tornou-se um escoador farto de armas e munições para o crime; endurecimento no combate ao contrabando na fronteira; adotar modelo da chamada polícia de proximidade, de presença policial permanente combinada com políticas voltadas para transporte, cultura, esporte, educação e cidadania, como fez Medellín, na Colômbia, que conseguiu reverter a violência dos narcotraficantes; e, por fim, a adoção sistemática do modelo adotado na Operação Carbono Oculto, realizada a partir da integração entre Receita Federal, Polícia Federal e Ministério Público, e que descortinou a atuação do crime organizado no mercado financeiro, com foco na inteligência, na cooperação institucional e regulatória, na identificação dos mecanismos de lavagem de dinheiro e na descapitalização do crime.

    • José Dirceu é ex-ministro-chefe da Casa Civil, ex-deputado federal e ex-deputado estadual pelo estado de São Paulo