A megaoperação Contenção deflagrada nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro (RJ), em 28 outubro deste ano, não terminou quando cessaram os disparos. Ela apenas mudou de campo. Dos becos para as telas, dos tiros para os tuítes, o que se seguiu foi uma guerra de narrativas tão intensa quanto o próprio confronto armado.
A ação, que mobilizou 2,5 mil policiais civis e militares e deixou 121 mortos, sendo 117 suspeitos e quatro policiais, se transformou rapidamente em um campo de disputa política e simbólica.
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Enquanto o som dos fuzis ecoava por mais de 12 horas seguidas nas comunidades, a disputa pela versão dos fatos se travava em tempo real nas redes sociais. O que estava em jogo não era apenas a legitimidade da operação, mas a definição de qual verdade o país acreditaria.
O discurso oficial: “Guerra ao crime”
A narrativa do governo do Rio e da cúpula da Segurança Pública foi de que era uma operação necessária. Em entrevista coletiva após a operação, o governador Cláudio Castro (PL) afirmou que o Estado “não fugiria da luta contra o crime organizado” e que a ação foi “planejada com inteligência, estratégia e rigor técnico”.
A Polícia Militar sustentou que seus policiais foram recebidos a tiros por criminosos do Comando Vermelho (CV) e que os confrontos se deram durante o cumprimento de mandados de prisão.
O secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, reforçou que a operação visava “desmantelar o núcleo armado de uma facção que aterroriza o Rio há décadas”.
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Cerca de 2.500 agentes das policias civil e militar participam nesta terca-feira (28) da “Operacao Contencaoî nos complexos da Penha e do Alemao, Zona Norte do Rio, com o objetivo de cumprir cerca de 100 mandados de prisao e 150 de busca e apreensao contra integrantes da faccao Comando Vermelho
EGBERTO RAS/Agencia Enquadrar/Agencia O Globo
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A incerteza sobre a própria segurança impede o descanso e compromete a saúde mental de quem vive sob risco constante
Fabiano Rocha/Agência O Globo
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Segundo líder do PT na Câmara, atuação de milícias nas favelas do Rio também será alvo de investigação da PF
Reprodução/X
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Megaoperação policial nos complexos do Alemão e da Penha
Fabiano Rocha / Agência O Globo
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Quatro policiais perderam a vida durante megaoperação no Rio
Fabiano Rocha / Agência O Globo
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Megaoperação das polícias deixa vários policiais feridos e mortos. O Hospital Getúlio Vargas, na Penha, recebeu os feridos
Gabriel de Paiva / Agência O Globo
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Megaoperação policial nos complexos do Alemão e da Penha (RJ)
Tercio Teixeira/Metrópoles
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Tercio Teixeira/Metrópoles
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Megaoperação no Rio de Janeiro
Reprodução / Redes sociais
Nos bastidores, integrantes da própria cúpula da segurança admitiram que a operação era também uma demonstração de força, planejada após uma sequência de emboscadas e ataques a policiais.
O governo buscava, segundo fontes da Polícia Civil, reafirmar o controle do Estado sobre áreas dominadas pelo tráfico, num momento em que a pressão pública por respostas crescia.
A reação das ONGs: “Chacina” e terror
Organizações sociais classificaram o episódio como uma “chacina sem precedentes”. No dia seguinte à operação, mais de 60 corpos foram retirados por moradores da mata da Serra da Misericórdia, corpos que ainda não constavam nos registros oficiais.
A discrepância entre as versões oficiais e os relatos locais gerou uma crise. O Supremo Tribunal Federal (STF) cobrou explicações do governo do Rio, após o Ministério Público apontar divergências entre os números enviados ao tribunal e os divulgados à imprensa.
ONGs e coletivos de direitos humanos pediram a atuação de organismos internacionais, alegando execuções sumárias e uso desproporcional da força.
A disputa política e o uso das redes
O episódio extrapolou os limites do Rio e se tornou o principal tema político do país. Em Brasília, deputados de oposição acusaram Cláudio Castro de transformar a política de segurança em “palanque eleitoral”.
Do outro lado, aliados do governador e parte da bancada conservadora defenderam a “coragem” da ação e culparam o governo federal por “omissão”.
Um levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou o tamanho da batalha digital: 1,9 milhão de postagens e 60 milhões de interações em apenas 24 horas.
As redes sociais se dividiram em dois blocos, de um lado, o discurso da “guerra contra o crime”, amplificado por perfis ligados à direita; de outro, a narrativa de “massacre” e “chacina”, impulsionada por parlamentares e movimentos de esquerda.
O governador Cláudio Castro foi o nome mais citado nas redes. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também foi alvo, opositores o acusaram de “lavar as mãos” e negar apoio logístico à operação.
Em um nível extremo de polarização, comparações com o conflito entre Israel e Hamas passaram a surgir em postagens, associando as cenas no Alemão à Faixa de Gaza. A operação, de questão policial, tornou-se símbolo político e ideológico, uma metáfora da guerra que divide o Brasil.
A era da desinformação: tiros reais, imagens falsas
O ambiente digital rapidamente se transformou em uma usina de fake news. Um dos vídeos mais compartilhados mostrava um suposto “traficante arrependido” pedindo perdão minutos antes de ser morto pelo Bope.
O vídeo, com milhões de visualizações, era gerado por Inteligência Artificial, o rosto e a voz do homem não pertenciam a ninguém real.
Outro episódio de desinformação ganhou força com a figura de uma mulher apelidada de “Japinha do CV”, suposta integrante do Comando Vermelho que teria sido morta durante a operação. A história viralizou em grupos de WhatsApp e no X.
Vídeos e postagens afirmavam que a jovem havia sido executada por policiais e teve a cabeça dilacerada. Dias depois, a Polícia Civil confirmou que a “Japinha do CV” não constava entre os mortos da lista oficial, e que as imagens que circulavam eram de um traficante baiano.
Ainda assim, o nome da jovem se tornou símbolo de uma tragédia inflada por desinformação, uma personagem real usada em narrativas falsas.
Outra fake news de grande alcance dizia que o presidente Lula teria determinado indenizações e pensões vitalícias às famílias dos mortos. Um print forjado de uma matéria jornalística circulou amplamente, forçando tanto o portal quanto o Ministério dos Direitos Humanos a desmentirem publicamente o boato.
Houve ainda manipulação de dados sobre a apreensão de armas. Postagens afirmavam que os 93 fuzis confiscados pertenciam a colecionadores e atiradores esportivos (CACs). A informação foi checada e classificada como falsa por jornalistas profissionais.
