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    Facções eleitorais (por Mary Zaidan)

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    Quase todo brasileiro é técnico de futebol. Há outras expertises nacionais. Somos curandeiros de plantão, com dicas medicinais infalíveis, experts em moralismos baratos, imbatíveis nos pitacos para levar vantagem em tudo. Desde a terça-feira passada, nos tornamos peritos em segurança pública, detentores de respostas precisas para salvar os milhões de cidadãos reféns de facções e milícias. Tudo a revelar que ninguém sabe, de fato, o que fazer para enfrentar o crime cada vez mais organizado.

    Entre o digladio ideológico e populista de esquerda e direita, só uma coisa é certa: a falência do Estado e a falta de disposição política para buscar saídas.

    Sem entrar no mérito da megaoperação do governo do Rio nos complexos do Alemão e Penha (que condeno na forma e no resultado, mas não me sinto apta para criticar ou elogiar por não me incluir entre os especialistas da vez), as cenas de guerra civil e de corpos enfileirados na rua são de arrepiar. E a elas se somam ao escárnio de políticos que transformam o medo da população em moeda eleitoral. É disso que se trata o tal “Consórcio da Paz”.

    Proposta pelos governadores de direita – Tarcísio de Freitas (SP), Ibaneis Rocha (DF, representado pela vice Celina Leão), Eduardo Reidel (MS), Jorginho Mello (SC), Ronaldo Caiado (Goiás), Romeu Zema (Minas) -, os três últimos presentes a uma reunião em apoio ao governador do Rio, Claudio Castro, a ideia é que esses estados troquem dados, experiência e até reforços no combate às facções. Ao mesmo tempo, eles se negam peremptoriamente a apoiar a PEC do governo federal que prevê a integração de forças para o combate do crime organizado. E o fazem mesmo depois de o governo Lula abrir mão de coordenar as ações, o que era tido por eles como tentativa de interferir na autonomia dos Estados. Ou seja, preferem fazer campanha eleitoral.

    Facções criminosas e milícias não surgiram da noite para o dia. Crescem em progressão geométrica. Estão no Norte e no Nordeste, alcançaram o Sul e Centro-Oeste e há anos fazem festa no Sudeste. Mas só viram emergência quando os políticos precisam. Agora não foi diferente.

    Sem exceção, todos à direita, que até então se via aprisionada ao ex inelegível e condenado Jair Bolsonaro, viram na guerra do Rio a chance de sair das cordas. E agem com exagero. Chegam, como Caiado, candidato ao posto de Lula, a defender a matança. “O que o secretário de Segurança e as polícias conseguiram no Rio é algo inédito e tem que ser aplaudido”, comemora o goiano. Acusam o governo central pelo crescimento da violência com a qual convivem (e nada fazem) há tempos, seja no Rio ou nos demais estados em que as facções atuam.

    Entre os governistas reina a confusão. Parte lamenta o atraso no envio do projeto antifacção, pronto há mais de três meses e só assinado sexta-feira pelo presidente. Outra corrente insiste na visão exclusiva de desrespeito aos direitos humanos, facilitando que opositores os tachem como defensores de bandidos. Lula, que há poucos dias enveredou-se pela absurda frase de que traficantes eram vítimas de usuários, está calado. Só fala por escrito.

    Nas redes, os defensores do governo tentam levantar a bola com exemplos das ações da Polícia Federal, que desbaratou operações do PCC paulista sem dar um único tiro. É fato louvável. Mas não tem o condão de fazer frente à rendição das populações pobres sob jugo de criminosos. Que veem seus filhos sendo cooptados por traficantes, que pagam mais caro por gás, internet e alimentos, que não podem nem mesmo ir e vir sem autorização prévia. Nada disso se resolve com novas leis.

    Há mérito na lei que amplia penas de integrantes de facções, mas isso pouco vale quando o país inteiro sabe que o Código Penal existente não é cumprido. Nesse quesito, a Justiça fica muito mal na fita. Dos 121 mortos na terça-feira de horror do Rio, 78 tinham “histórico criminal relevante”, incluindo crimes hediondos. Pergunta-se: por que estavam soltos?

    A terrível conclusão – novamente sem entrar no mérito da operação – é que não há mocinho nessa história. O crime organizado se alimenta do desinteresse e inoperância das instituições, enquanto políticos, como facções eleitorais, utilizam a criminalidade para turbinar suas campanhas. Os milhares de reféns nas comunidades do Rio e em tantos lugares esquecidos do Brasil que se danem. De um lado e do outro da rinha política eles são só números, estatísticas… e votos.

     

    Mary Zaidan é jornalista