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    O que vi no “Gilmarpalooza Buenos Aires” durante três dias de evento

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    “Estamos vivendo uma época de desordem. O mundo está vivendo a época mais perigosa para a democracia.”
    A análise de Daniel Zovatto, diretor regional para a América Latina e o Caribe do International Institute for Democracy and Electoral Assistance (IDEA), ecoa entre pensadores da nossa época.

    Com visões mais ou menos alarmantes, todos concordam em um ponto: a sociedade chegou ao limite em relação à classe política — a ponto de já aceitar abrir mão do direito de se manifestar em troca de qualquer regime que garanta o mínimo necessário para sobreviver com dignidade.

    Na Argentina, a inflação; no Brasil, 30 milhões de pessoas sem acesso à água. Em ambos, a corrupção reforça a sensação de que “é cada um por si” e de que não vale a pena ser um cidadão de bem.

    Descrente das instituições, o eleitor passou a “testar” alternativas a cada ciclo eleitoral. Jair Bolsonaro e Javier Milei ilustram esse movimento: o primeiro, um deputado sem protagonismo; o segundo, um outsider. Ambos ascenderam ao poder sob a promessa de que “resolveriam os problemas do país” — mas não na “lentidão da democracia”.

    A pergunta que se impõe é: até onde é possível esticar a corda?

    A versão latina do “GilmarPalooza” busca preencher a lacuna de interlocução entre os dois países.

    Raúl Gustavo Ferreyra, professor de Direito Constitucional da Universidade de Buenos Aires, chamou atenção para o ineditismo: foi a primeira vez em que o português se tornou a língua predominante em um fórum na instituição fundada em 1821 — que formou 16 presidentes argentinos e quatro prêmios Nobel.

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    Gilmar Mendes citou o sociólogo Manuel Castells — sociólogo espanhol — para quem dois terços da população mundial acreditam que os políticos não os representam e que são corruptos.

    O ministro lembrou ainda o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 2018, no livro Crise e Reinvenção da Política no Brasil, FHC já dizia que uma nova sociedade está se formando, mas ainda não se sabe que instituição a sucederá. Da mesma obra vem a constatação de que, enquanto não se descobre um regime melhor, o fortalecimento da democracia passa por restabelecer a confiança e os laços de poder.

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    O ex-presidente da Colômbia Iván Duque trouxe números para dimensionar o desafio: 70% dos habitantes do planeta vivem em regimes autoritários ou híbridos — isto é, nem plenamente democráticos nem totalmente autoritários. Brasil e Argentina se enquadrariam, segundo ele, neste último grupo, marcado pela erosão democrática.

    Sabatinado pelo banqueiro André Esteves, do BTG, e por Gilmar Mendes — diante de uma plateia com ministros do STF, STJ, TSE e desembargadores — Duque alertou para o risco da politização do Judiciário.

    Regimes populistas, observou, frequentemente tentam cooptar ou capturar o sistema judicial, utilizando-o para perseguir opositores e blindar aliados. A perda de imparcialidade do Judiciário — isto é, sua politização — abre caminho para o autoritarismo e para a erosão das instituições.

    O diagnóstico foi reforçado por Domingos Farinho, professor assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

    Ele ressaltou que o Judiciário interfere na política porque os atores eleitos perderam capacidade de decidir; porém, quando passa a ocupar de forma duradoura funções próprias do Legislativo e do Executivo, compromete o equilíbrio democrático e esvazia o consenso político.

    O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), já havia tocado nesse ponto na abertura do encontro:

    “A radicalização, a antecipação do debate eleitoral interferem no nosso trabalho. Lula diz que é candidato à reeleição; o Supremo julga Bolsonaro, o tarifaço, as sanções. Está muito difícil encontrar consenso.”

    A era Motta se viu diante, mais do que nunca, da “democracia digital”.

    As redes sociais estão acelerando a crise de confiança nas instituições, incentivando radicalização, desinformação e ataques aos freios e contrapesos democráticos.

    Diante desse cenário, surge a questão: o que fazer?

    “Erramos ao demorar para regular as redes sociais. Não podemos errar ao demorar para regular a IA”, defende Laura Schertel Mendes, diretora do Centro de Direito, Internet e Sociedade do IDP e professora do IDP e da UnB.

    “Num mundo em que se aplaude a malícia, é fundamental formar bons seres humanos. Um jovem que aprende a ser autônomo será imune ao radicalismo, ao ódio e à polarização”, complementou o ex-presidente da Colômbia.