A Prefeitura de São Paulo já defendeu o livro infantil Ciranda em Aruanda, de Liu Olivina, no ano passado, em reação à insatisfação de uma família evangélica responsável por uma criança de 3 anos matriculada na rede municipal.
Na última semana, a obra também esteve envolvida em uma denúncia à Polícia Militar (PM) após uma criança de 4 anos desenhar uma orixá em uma Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) na zona oeste da cidade.
Ciranda em Aruanda: o que é o livro
- A obra Ciranda em Aruanda está no acervo oficial da rede municipal de ensino de São Paulo.
- O livro recebeu o selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e de Acervo Informativo de Qualidade da Cátedra Unesco de Leitura – PUC.
- Na obra, Liu Olivina traz ilustrações de 10 orixás e apresenta, em textos curtos, as características das divindades. Oxóssi, por exemplo, é retratado como “o grande guardião da floresta”.
- O material é discutido na escola com base nas leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, que tornam obrigatório em todo o território nacional o ensino de história e cultura afro-brasileira.
Família evangélica disse estar “muito indignada” com obra
Em setembro de 2024, o deputado estadual Daniel Soares (União) enviou um ofício à Prefeitura de São Paulo pedindo “informações urgentes” sobre a distribuição do livro em uma creche da capital paulista.
O parlamentar acionou a gestão municipal após receber denúncia de uma família evangélica que disse ter ficado “muito indignada” com o teor dos livros distribuídos às crianças para atividade escolar.
Eles se referiam ao livro Ciranda em Aruanda, que aborda a mitologia dos orixás, e foi à época distribuído no Centro de Educação Infantil (CEI) Maria Nele, no Morro do Índio, zona sul da capital, para crianças a partir de 3 anos de idade.
“Por ser um período tão importante na vida de uma criança, solicito informações urgentes se há no projeto pedagógico matéria de ensino religioso, e se a resposta for positiva quais os livros que têm sido distribuídos para atividade, além do mencionado”, pediu Soares no ofício enviado à prefeitura.
Em resposta, a gestão municipal defendeu o livro de forma veemente. “A obra apresenta beleza e delicadeza nas ilustrações que não infantilizam a experiência de leitura de imagens realizada por bebês e crianças, mas trata a infância com sensibilidade e respeito por compor as páginas com personagens que habitam os diferentes ambientes da Terra, propondo uma conexão das infâncias com a natureza, sem apresentar entidades religiosas, mas personagens em relação com as florestas, com os mares, com o céu, com os rios, com o ar e com o fogo”, diz o documento obtido pelo Metrópoles.
“A mitologia dos orixás, apresentada nas poesias do livro, também abarca importantes elementos da intencionalidade pedagógica da educação infantil nas aprendizagens sobre natureza e cultura, pois cada orixá se relaciona com elementos da natureza, como o clima, a vegetação, os rios, os mares e praias”, continuou a prefeitura.



Desenhos que alunos do EMEI Antônio Bento, em São Paulo, fizeram em atividade sobre religiões de matriz africana
Material cedido ao Metrópoles
Desenho da orixá Iansã que motivou pai de aluna de escola infantil de São Paulo a chamar a polícia
Material cedido ao Metrópoles
Desenhos de alunos do EMEI Antônio Bento, em São Paulo, em atividade intitulada “Ciranda de Aruanda”
Material cedido ao Metrópoles
Capa do livro “Ciranda em Aruanda”, de Liu Olivina, publicado pela Editora Quatro Cantos
Reprodução/Liu Olivina/Editora Quatro Cantos
No livro, a autora traz desenhos e informações sobre dez orixás
Reprodução/Liu Olivina/Editora Quatro Cantos
Liu Olivina, autora de livro que inspirou atividade denunciada à PM
Acervo Pessoal
Justificativas para inclusão do livro no acervo oficial de SP
Na mesma resposta, a Prefeitura de São Paulo apresentou o processo e as justificativas para a inclusão de Ciranda em Aruanda no acervo oficial do município. Segundo a administração, a Secretaria Municipal de Educação (SME) adquire as obras da rede de ensino por meio de editais públicos, divulgados no Diário Oficial.
Uma comissão, constituída por formadores e educadores de todos os territórios da cidade de São Paulo, avalia e seleciona as obras enviadas pelas editoras.
“A diversidade na composição da comissão tem o objetivo de assegurar uma construção polissêmica do acervo e envolver diferentes profissionais da educação no trabalho pedagógico literário”, afirmou a prefeitura.
Segundo a gestão, as escolhas “não privilegiam crenças pessoais”, mas se baseiam em critérios pedagógicos do Currículo da Cidade, de 2019, e nos princípios das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs).
Quem é Iansã, orixá retratada por criança e alvo de polêmica em escola
A gestão destacou outras obras do acervo que se baseiam em mitologias ou parábolas de diferentes religiões, principalmente cristãs, como Tem Um Lugar Para Todos, de Massimo Caccia, que discorre sobre a arca de Noé, e O Cântico dos Cânticos, de Ângela Lago, releitura de um livro bíblico com o mesmo nome.
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A resposta ao parlamentar também citou deuses gregos e romanos, que geralmente são apresentados como parte da “cultura clássica” e vistos como alicerce da civilização ocidental. Eles são apresentados como parte da herança cultural “universal”, desvinculados de prática religiosa e tratados como mitologia, “o que as torna aceitáveis em contextos laicos”.
“Por outro lado, as divindades africanas ainda carregam o peso da colonização e do racismo. As religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, foram criminalizadas no Brasil por muito tempo e, ainda hoje, são vítimas de preconceito e intolerância religiosa. Essa herança colonial faz com que muitas pessoas, inclusive dentro do ambiente escolar, vejam essas tradições religiosas com desconfiança ou como algo exótico e distante”, ponderou a prefeitura.
A SME considera que, quando livros literários baseados em mitologias africanas são adotados no acervo da escola pública, “trata-se de ampliar as diferentes manifestações culturais que estão presentes em nossa sociedade, como compromisso com educação integral, inclusiva e equitativa”.
“Sendo assim, a leitura do livro Ciranda em Aruanda também é parte do projeto da Unidade Educacional de trabalho com práticas antirracistas. Trata-se da constituição identitária da população brasileira que também tem ancestralidade africana”, justificou.
A Prefeitura ainda incluiu no ofício os benefícios que propostas pedagógicas do tipo podem proporcionar aos estudantes, como:
- Reflexão sobre a diversidade religiosa do Brasil e do mundo.
- Desconstrução de estereótipos racistas que associam religiões de matriz africana à inferioridade ou à criminalidade.
- Criação de espaço de respeito e diálogo entre diferentes culturas e saberes.
- Formação de cidadãos críticos e capazes de respeitar a pluralidade.
- Oportunidade para a escola se apresentar como parte legítima do patrimônio cultural, sem favorecimentos religiosos.
Pai acionou a PM após filha de 4 anos desenhar orixá
O pai de uma aluna da Escola Municipal de Ensino Infantil (Emei) Antônio Bento, no Caxingui, zona oeste de São Paulo, acionou a PM após descobrir que a filha de 4 anos fez um desenho da orixá Iansã em uma atividade no colégio. O caso aconteceu na tarde da última quarta-feira (12/11).
A atividade se baseia no currículo antirracista da rede municipal de ensino e utilizou o livro Ciranda em Aruanda. No dia anterior (11/11), o pai, que é soldado da Polícia Militar, já havia demonstrado insatisfação com o tema, e chegou a rasgar um mural com desenhos das crianças que estava exposto na escola, segundo a mãe de um estudante.
Depois do episódio, a direção do colégio indicou que o homem participasse, na quarta-feira, da reunião do Conselho da Escola, prevista para acontecer às 15h. Ele não compareceu ao encontro, mas acionou a PM.
Os PMs permaneceram dentro da Emei por pouco mais de uma hora. A abordagem foi considerada hostil por testemunhas. A supervisora de ensino foi acionada e também compareceu ao local.
Aos agentes, a direção da Emei citou as leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, que tornam obrigatório em todo o território nacional o ensino de história e cultura afro-brasileira, e explicou que a atividade não tinha caráter doutrinário. As crianças teriam apenas ouvido a história do livro e fizeram um desenho na sequência.
Após o episódio, moradores dos bairros Caxingui e Instituto de Previdência fizeram um abaixo-assinado cobrando a atuação da Corregedoria da Polícia Militar contra os policiais que entraram armados na Emei.
O que dizem a SSP e a Prefeitura
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirmou que, ao atender à ocorrência, os policiais conversaram com as partes – pai e diretora da instituição de ensino.
“Ambos foram orientados a registrar boletim de ocorrência, caso julgassem necessário. A Corregedoria da PM está à disposição para apurar eventuais denúncias sobre a conduta policial”, disse a pasta.
Na primeira resposta à reportagem, a SSP destacou que o uso do armamento, que inclui metralhadora, faz parte do Equipamento de Proteção Individual (EPI) dos policiais e é portado durante todo o turno de serviço.
Posteriormente, a pasta afirmou que a conduta dos policiais militares envolvidos na ocorrência será investigada, inclusive com “análise das imagens das câmeras corporais”.
Já a Prefeitura de São Paulo, por meio da SME, informou que o pai da estudante recebeu esclarecimentos de que o trabalho apresentado por sua filha integra uma produção coletiva do grupo.
“A atividade faz parte de propostas pedagógicas da escola, que tornam obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena dentro do Currículo da Cidade de São Paulo”, reforçou a gestão municipal.





