A mesma quadrilha que produzia fuzis em uma fábrica aeroespacial no interior paulista também desenvolvia projetos de pistolas Glock, segundo laudos da Polícia Federal (PF).
Durante buscas na empresa Kondor Fly, em Santa Bárbara d’Oeste, em agosto, os agentes encontraram arquivos digitais nomeados como “G19_v2”, “SlideGlock” e “Lower_Pistol_45” — todos compatíveis com componentes de pistolas semiautomáticas de uso restrito. As armas eram negociadas com facções criminosas, entre elas o Comando Vermelho (CV).
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O material foi localizado em um HD externo apreendido com Anderson Custódio Gomes, o programador de Controle Numérico Computadorizado (CNC) apontado como o cérebro técnico da operação.
De acordo com os peritos, os arquivos continham modelos tridimensionais de ferrolhos, carcaças e conjuntos de gatilho, com dimensões idênticas às da Glock 19 — uma das armas mais procuradas no mercado ilegal.



Peças de armas eram projetadas e feitas clandestinamente
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Armamento era montado em Bunker no interior de SP
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Ação conjunta da PF e PM apreendeu dezenas de fuzis
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Armamento era negociado com criminosos
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Um dos supostos clientes do grupo seria o Comando Vermelho
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Supeitos com formação técnica trabalhavam para quadrilha
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Dono de fábrica consta entre os investigados
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Arte Alfredo Henrique/Metrópoles
“Os desenhos possuem a mesma geometria e encaixes típicos de pistolas Glock. O nível de detalhamento demonstra conhecimento técnico e domínio de engenharia reversa”, explicou um dos peritos da PF que analisou o material.
O programador e o projeto secreto
Durante o interrogatório, Anderson confirmou ter criado os arquivos, mas tentou justificar o conteúdo técnico.
“Eu fiz os desenhos no Fusion pra estudar. Era pra testar o curso da máquina, não era pra fazer arma”, afirmou ele aos agentes federais.
A análise pericial, no entanto, indicou que os arquivos estavam prontos para serem usados na usinagem e continham comandos de exportação direta para os tornos CNC da fábrica.
Também foram identificados registros de simulações de corte metálico com o mesmo tipo de alumínio e aço usados em pistolas reais.
O delegado Jeferson Dessotti Cavalcante Di Schiavi, que conduz a investigação, classificou a descoberta como “uma segunda frente de produção, paralela à fabricação dos fuzis”. “Esses arquivos evidenciam que o grupo tinha plena capacidade de produzir pistolas Glock em larga escala. Havia planejamento industrial, não improviso”, disse o delegado.
Peças de precisão e testes de encaixe
Os agentes também apreenderam dois ferrolhos parcialmente usinados e um protótipo de carregador metálico entre as peças guardadas em um depósito, também usado pela quadrilha, em Americana, ainda no interior paulista. Esses componentes foram periciados e confirmados como compatíveis com pistolas automáticas.
Segundo relatório técnico obtido pela reportagem, as peças apresentavam acabamento “de padrão industrial” e foram fabricadas em aço 4140 e alumínio aeronáutico 7075, os mesmos materiais usados na produção de armas de fogo.
Em depoimento, Janderson Aparecido Ribeiro de Azevedo, operador de máquinas, disse que apenas testava as medidas sob orientação de Anderson. “Ele pedia pra eu ver se a peça encaixava. Eu achava que era suporte de trava ou parte de drone. Nunca vi pistola pronta”, declarou à PF.



Projetos eram posteriormente executados em fábrica no interior paulista
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Armas eram projetadas em 3D
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Armas eram montadas no interior de SP
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Armas eram repassadas para facções no Rio e nordeste
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Peças eram feitas com maqunário de fábrica que deveria produzir peças aeroespaciais
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Armas custavam entre R$ 8 mil e R$ 15 mil
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Intercâmbio e elo com outras fábricas
Conversas de WhatsApp e e-mails extraídos de computadores, apreendidos pela PF, mostraram que os projetos das pistolas foram enviados a outros técnicos da região, reforçando a suspeita de ramificações em Piracicaba e Limeira, como revelado pelo Metrópoles.
Uma das mensagens, de julho, traz Anderson enviando um arquivo “Glock19_v3.cnc” para um contato identificado apenas como “Edu CNC”. “Vê se o torno da sua aí segura essa medida. Essa trava é chata de acertar.”
O arquivo enviado era um modelo de ferrolho completo, em escala real, pronto para ser reproduzido em máquinas industriais, destacam os investigadores.
“Há evidência de compartilhamento de códigos e arquivos de pistolas entre operários de empresas de usinagem. Isso demonstra disseminação técnica do projeto ilícito”, apontou um agente envolvido na análise digital.
Ganhos e pedidos sob encomenda
Planilhas apreendidas pela PF indicam que o grupo também recebia pedidos de pistolas, com preços variando entre R$ 6 mil e R$ 8 mil por unidade. Os pagamentos eram feitos por Pix e depósitos em espécie, vindos principalmente do Rio de Janeiro, berço do CV.
Segundo o delegado Di Schiavi, parte das mensagens trocadas entre Anderson e Wendel dos Santos Bastos menciona “armas curtas” e “kit de trava dupla”, termos técnicos usados por fabricantes e colecionadores de pistolas automáticas. Wendel é apontado na investigação da PM como o elo entre o chão de fábrica e o mercado ilegal.
Em uma das conversas, ele escreveu que “o cara quer duas curtas e uma longa, tudo no padrão preto, sem marca”. Anderson então o responde: “Beleza, as curtas vão no modelo G, sem logo”.
Para os investigadores, “modelo G” é a abreviação usada internamente para se referir às pistolas Glock.
“Os diálogos demonstram que eles produziam sob encomenda e conheciam bem o mercado clandestino de armas curtas”, afirmou o promotor de Justiça Luiz Fernando Cardoso Ribeiro, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de Campinas (MPSP).
Em depoimento, Gabriel Carvalho Belchior, proprietário da Kondor Fly, negou envolvimento na fabricação de pistolas. “Eu nunca vi essas peças pequenas sendo feitas. O que eu sabia é que estavam testando coisas de precisão, como mola e travas de equipamento aeronáutico”, disse ele aos investigadores.
Mesmo assim, a PF localizou notas fiscais emitidas pela empresa para comprar microferramentas de corte e fresas específicas, as quais são usadas na confecção de pequenas peças metálicas.
“Essas ferramentas são incomuns na indústria aeronáutica e indicam intenção de usinar componentes de pequeno porte e alta densidade”, explicou um dos peritos, no relatório anexado ao processo.
A industrialização do crime
Com os projetos de pistolas Glock descobertos, a PF considera que o grupo tinha domínio completo da produção de armas, tanto longas quanto curtas. Os investigadores classificam o caso como “indústria criminosa de alta complexidade”, com potencial de abastecer o mercado ilegal com armas de uso restrito.
“Não se trata de improviso artesanal, mas de engenharia reversa aplicada. A quadrilha dominava a tecnologia de produção de pistolas e fuzis, com padrão comparável ao industrial”, destacou o engenheiro mecânico Gustavo Mendes de Azevedo, perito-chefe da PF, responsável pelo Laudo Técnico de Balística e Engenharia Mecânica que analisou as peças apreendidas na fábrica.
Envolvidos e nova linha de investigação
A descoberta da fabricação de pistolas Glock levou a PF a abrir nova linha de investigação para identificar possíveis compradores e fábricas que receberam os arquivos digitais. Por isso, o MPSP solicitou novas quebras de sigilo bancário e de comunicações.
Os principais investigados, até o momento, são:
- Anderson Custódio Gomes — programador CNC; criador dos arquivos de fuzis e pistolas; preso.
- Janderson Aparecido Ribeiro de Azevedo — operador de máquinas; fez testes de encaixe das peças.
- Wendel dos Santos Bastos — intermediário logístico; negociava as “armas curtas” com compradores.
- Gabriel Carvalho Belchior — proprietário da Kondor Fly; investigado por permitir uso do maquinário.









