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    Quando a informação deixa de orientar e passa a conduzir (Maria Klien)

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    Abro a tela do celular para verificar acontecimentos e, sem perceber, permaneço num percurso que altera o meu estado interno. Esse movimento recebeu o nome de doomscrolling. Trata-se do consumo prolongado de conteúdos que despertam alerta e instauram inquietação. O que observo não é apenas o teor das notícias, mas a reação que cada sinal produz no organismo.

    O cérebro identifica perigo antes de reconhecer a estabilidade. Cada manchete que sugere risco ativa sistemas internos que liberam cortisol e produzem dopamina. Esta combinação sustenta um ciclo no qual preocupação e curiosidade permanecem ligadas. Uma parte de nós procura afastamento. Outra parte continua a buscar dados na expectativa de alcançar o controle.

    Uma revisão conduzida por Sena Güme em 2024 analisou investigações sobre este comportamento. Os resultados relacionam ansiedade, aumento de estresse, desgaste emocional, alterações no sono e diminuição do bem-estar psicológico. Em vários relatos surge a percepção de incapacidade perante acontecimentos que ultrapassam o indivíduo, como se o fluxo contínuo de más notícias reduzisse a noção de possibilidade.

    Nas minhas intervenções clínicas insisto que o problema não está na vontade de acompanhar o mundo. Informação organiza escolhas e sustenta ação consciente. O risco aparece quando a procura de segurança se converte em exposição contínua a sinais que retiram essa garantia. O gesto se torna automático e encobre processos internos que permanecem sem expressão.

    O excesso de estímulos impede a integração. A rolagem da tela do celular se transforma num ritual repetido que prolonga a vigilância e fragiliza a clareza. O gesto de deslizar o dedo no feed de uma rede social procura antecipar ameaças, embora não ofereça orientação. O resultado é a perda de fronteiras entre atenção e saturação, com impacto direto na capacidade de avaliar o que se sente.

    Há uma pergunta que utilizo com frequência: a informação serve para situar ou para manter um estado em que a pessoa não consegue interromper o processo? Esta questão desloca o olhar do conteúdo para o impulso que o antecede. Quando a pessoa reconhece o movimento interno que a conduz a rede social, se inicia a possibilidade de interromper o ciclo.

    Consumir notícias com limites não implica afastamento da realidade. Implica cuidado na forma como se estabelece contacto com ela. Criar horários definidos, selecionar fontes com critério, evitar consultas compulsivas e introduzir pausas ao longo do dia devolve capacidade de escolha. Sem estes limites se instala vigilância que compromete ação futura.

    Também é importante recordar que o mundo não se restringe ao que desperta alerta. Há processos que ampliam a compreensão e revelam caminhos possíveis, embora raramente ocupem espaço central nas plataformas. Encontrá-los exige intenção. Intenção devolve escolha. Escolha devolve presença.

    Escrevo para sugestionar essa recuperação da presença. Não para ignorar acontecimentos, mas para se relacionar com eles de forma organizada. A rolagem infinita da tela do celular não resolve inquietações internas. Apenas prolonga a distância entre o que sente e o que precisa. Quando define os limites, cria as condições para ver o mundo sem se perder.

     

    (Transcrito do PÚBLICO-Brasil)