Em 2024, o adolescente Daniel Ribeiro criou um plano. No ano seguinte, ele trabalharia de manhã em alguma empresa, faria um curso técnico durante a tarde e estudaria no ensino médio à noite. A meta era ingressar logo no mercado de trabalho, mas o plano acabou frustrado na hora de fazer a matrícula na escola.
“Me entregaram uma folha de matrícula, mas precisava especificar o CNPJ da empresa e mostrar a carteira de trabalho. Quando eu vi essa parte, eu não consegui fazer”, disse ele, que contava com a mudança de horário para procurar emprego, mas acabou mantendo as aulas de manhã. “Eu poderia estar ajudando a minha família com uma renda a mais, ajudando nas contas, e agora eu não posso.”
As exigências na hora da matrícula foram fruto de uma resolução do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), publicada naquele ano, e que intensificou ainda mais uma tendência já desenhada na rede estadual de São Paulo: a diminuição das turmas de ensino noturno.
Um levantamento exclusivo feito pelo Metrópoles, com base em dados da Secretaria Estadual da Educação, mostra que mais de mil escolas estaduais deixaram de oferecer aulas à noite em São Paulo na última década. Em número de turmas, o estado perdeu cerca de 11 mil salas de aulas noturnas em dez anos, somando as classes de ensino regular e ensino de jovens e adultos (EJA).
E, entre 2024 e 2025, já na gestão Tarcísio, o estado registrou a maior queda percentual de turmas noturnas da década: 13,84%.



Daniel Ribeiro queria estudar à noite para trabalhar e fazer curso técnico durante o dia, mas não conseguiu matrícula porque ainda não tinha o emprego
Jessica Bernardo / Metrópoles
Escola Brigadeiro Gavião Peixoto tinha mais de 30 turmas de ensino noturno em 2015 e hoje tem apenas 7
Jessica Bernardo / Metrópoles
Cartaz convida pessoas a se matricularem na escola em 2026 à noite. Segundo mães, faixa foi colocada para incentivar procura e evitar fim do ensino noturno na escola em 2026
Jessica Bernardo / Metrópoles
EE Brigadeiro Gavião Peixoto é uma das maiores do estado
Jessica Bernardo / Metrópoles
EE Brigadeiro Gavião Peixoto fica em Perus, zona noroeste da capital paulista
Jessica Bernardo / Metrópoles
Como foi feito levantamento
- Os cálculos foram feitos a partir de dados da Secretaria da Educação disponibilizados via Lei de Acesso de Informação (LAI) sobre o cenário entre os anos 2015 e 2024.
- Para a comparação com este ano foram utilizadas as informações da rede em setembro de 2025, disponíveis no portal Dados Abertos da Educação, também da própria pasta.
- A conta leva em consideração escolas estaduais (EE), escolas estaduais indígenas (EEI) e escolas localizadas em quilombos e assentamentos.
Em 2015, São Paulo tinha 2.803 escolas estaduais com aulas à noite. Este ano, o número caiu para 1.633. Em várias escolas, ainda há turmas de noturno, mas em quantidade bem menor que no passado e dedicadas principalmente ao EJA.
Na E.E. Brigadeiro Gavião Peixoto, onde Daniel estuda, em Perus, na zona noroeste de São Paulo, eram 33 salas abertas à noite em 2015, sendo 25 de ensino médio e 8 voltadas às turmas do EJA. Agora, a escola tem apenas duas salas de 3º ano do ensino médio regular e cinco de EJA.
A dona de casa Tatiane Ferreira, de 36 anos, que mora em Perus, diz que vários alunos passaram a estudar em outros bairros por causa da falta de vagas à noite na escola nos últimos anos. Seu filho foi um deles.
“Na época, nós fomos atrás de mais de 50 cartas [de alunos] comprovando que tinha demanda e mesmo assim fechou [turma]”, diz ela.
Em número de turmas, o estado saiu de 20.392 salas abertas à noite, somando ensino regular e EJA, em 2015, e foi para 9.459 em setembro de 2025.
Impacto da pandemia
A queda no número total de salas de aula abertas à noite em São Paulo, somando ensino regular e EJA, foi praticamente contínua de 2015 a 2025, tendo sido interrompida só uma vez, em 2022, no contexto pós-pandemia de Covid-19.
Naquela época, foram abertas 46 turmas a mais na rede estadual, um crescimento puxado pelas 532 novas salas para o ensino médio noturno e 6 novas salas para o ensino fundamental noturno, enquanto 492 turmas de EJA à noite foram fechadas.
Os dados específicos do ensino médio mostram que a pandemia, de fato, impactou a demanda por ensino noturno e forçou a abertura de novas turmas no estado.
Desde 2015, as classes noturnas de ensino médio diminuíam ano após ano, mas a tendência mudou em 2021 e o número de salas cresceu até 2023. Em 2024, já na gestão Tarcísio, a quantidade de turmas noturnas voltou a cair, atingindo o menor número da década até então: 9.130.
Leia também
-
Atribuição de aulas: em nova regra, curso on-line vale mais que doutorado
-
Juiz exige reintegração de docentes afastados pós-licença médica em SP
-
Lula defende universalizar Pé-de-Meia e avisa: “Faria Lima vai brigar”
-
Governo Lula anuncia ampliação de programa de apoio a cursinho popular
Entre 2024 e 2025 (considerando os dados atualizados até setembro no Portal Dados Abertos da Educação), a quantidade de classes do ensino médio à noite teve uma nova redução, a maior, em percentual, da década até então, com 13,84% menos salas de aula entre um ano e outro. Veja os números:
Em 2024, a Secretaria da Educação publicou uma resolução que exigia a comprovação de vínculo empregatício para a garantia de vaga à noite aos estudantes do ensino médio. Depois de uma repercussão negativa, a pasta atualizou o documento para que também fossem aceitas as matrículas de estudantes que declarassem trabalhar como autônomos.
A promotora Fernanda Peixoto Cassiano foi uma das responsáveis por sugerir a mudança na resolução, por meio do Grupo de Atuação Especial de Educação (GEDUC) do Ministério Público de São Paulo (MPSP).
“A gente compreende a gravidade de um adolescente estar trabalhando sem registro em carteira, que é ilegal e precisamos combater, mas a gente também compreende que existe uma realidade que força esses estudantes a entrarem nesse mercado de trabalho informal e que muitas vezes eles são arrimos de família, afirma.
Ela conta que o GEDUC tem acompanhado a redução das turmas de noturno no estado e solicitado informações sobre o tema para a Secretaria da Educação. Em abril de 2025, a pasta informou para a promotora que havia uma demanda reprimida de 3.847 alunos para o ensino médio noturno.
O Metrópoles questionou a secretaria se a demanda reprimida continuava. Em nota, a pasta disse que a oferta de vagas para o período noturno na rede estadual paulista foi ampliada em 2025 e passou a atender 26 mil estudantes a mais entre fevereiro e outubro deste ano, mas não respondeu se há espera por vagas.
Para Fernanda, o principal problema, no entanto, pode estar no que ela chama de “demanda oculta”: os casos em que o adolescente e sua família nem chegam a procurar a escola estadual para fazer matrícula no ensino médio porque ele começa a trabalhar assim que sai do ensino fundamental na escola da prefeitura. “Não existe levantamento desses dados [pela Seduc]”, diz ela.
O Metrópoles apurou que, para 2026, o governo Tarcísio planeja uma nova diminuição de turmas de noturno no estado. Nas Escolas Professor José Liberatti, e Walter Negrelli, ambas em Osasco, na região metropolitana de São Paulo, professores e pais foram informados de que não serão abertas salas para o 1º ano do ensino médio à noite.
Educadora da E.E. Professor José Liberatti, Ana Lima, 48 anos, diz que a mudança vai impactar diretamente nos planos dos estudantes que querem procurar o primeiro emprego.
“Nós temos 25 alunos do 9º ano interessados em ir para o noturno e mesmo assim essa turma não será aberta. A maior parte dos alunos que vai para o noturno já está na expectativa de fazer estágio”, afirma.
A Secretaria da Educação diz que os estudantes das duas escolas de Osasco que quiserem cursar o Ensino Médio noturno serão encaminhados para unidades próximas, respeitando o limite de distância determinado pela legislação, e que a prioridade do ensino noturno é para alunos que tenham começado a trabalhar.
No caso da EE Prof. José Liberatti, o encaminhamento será para a EE Antônio Raposo Tavares. Já no caso da EE Walter Negrelli, os alunos serão encaminhados para a EE Prof. Elói Lacerda. As duas ficam a 1,1 km de distância das escolas atuais, segundo a secretaria.
Cláudia Costin, especialista em educação e ex-diretora Global da área no Banco Mundial, diz que a queda nas turmas de ensino não é necessariamente um indicador ruim, contanto que nenhum aluno fique sem estudar. Ela conta que, no caso do ensino fundamental e médio, estudos já indicaram que os adolescentes apresentam níveis de aprendizagem melhor durante o dia, em parte porque possuem mais horas de aula e estão descansados.
“O noturno tem formalmente quatro horas, mas a partir de um determinado horário, o adolescente começa a ficar exausto”, afirma Cláudia.
Uma das principais mudanças detectadas pela reportagem no levantamento foi o fim das turmas de ensino fundamental regular à noite. Até o ano passado, o estado tinha 8 classes noturnas desse tipo, segundo os dados da Secretaria da Educação. Todas ficavam em Campinas, no interior do estado.
Cláudia ressalta ainda que o ideal é que o Estado crie condições para que os adolescentes não precisem trabalhar durante o dia, e que as turmas noturnas sejam dedicadas ao EJA.
“A Organização Internacional do Trabalho (OIT) recomenda, e o Brasil é signatário dessa decisão, que durante os anos de escolaridade obrigatória, o trabalho de crianças e adolescentes não deveria acontecer, a não ser na condição de aprendiz, mas vinculado ao processo de ensino. Então, não é recomendável que adolescentes, mesmo aqueles que estão com 17 anos, estejam estudando à noite [por causa disso]”.
A especialista diz que o Pé-de-Meia, programa criado pelo governo federal e que paga um auxílio para que alunos continuem no ensino médio, é uma política importante para fazer com que esses estudantes se dediquem exclusivamente ao ensino.
Ela destaca, no entanto, que no caso das turmas de EJA é fundamental que o estado continue fornecendo as classes noturnas de acordo com as demandas para que adultos que deixaram a escola antes do tempo tenham oportunidade de voltar a estudar.
Outro lado
Em nota, a gestão Tarcísio diz que não descontinuidade do programa de ensino noturno, que é prioritariamente voltado a alunos que trabalham ou precisam estudar à noite por motivos familiares.
A gestão Tarcísio diz que passou a atender 26 mil estudantes a mais no noturno em 2025, mas que a rede tem registrado uma “redução global no número de matrículas em todos os turnos e ciclos de ensino ao longo dos últimos anos” e que o fenômeno é associado à desaceleração populacional e ao crescimento do ensino profissionalizante e em tempo integral.
“Ambas as modalidades foram ampliadas no Estado na atual gestão, tendo o ensino técnico integrado ao médio registrado crescimento de 314%”, diz a nota.
A Secretaria afirma ainda que, para garantir o atendimento a todos os estudantes, tem adotado “diferentes ações de reengajamento e busca ativa voltadas a jovens trabalhadores e adultos que interromperam a trajetória escolar, com o fortalecimento da modalidade noturna e oferta de modelos flexíveis de ensino”.
Entre elas, segundo a pasta, está a criação de programas como o BEEM (Bolsa Estágio Ensino Médio), que oferece aos estudantes do Ensino Médio Técnico da rede estadual uma bolsa auxílio para a realização de estágio supervisionado.
De acordo com o governo, o número de turmas de ensino médio noturno chegou a 7.957 em outubro.




