Mensalmente, sete ocorrências de aborto chegam, em média, à Polícia Civil do estado de São Paulo. Desse total, a maioria são casos de interrupção voluntária da gravidez: provocados pela própria mulher ou por outras pessoas a pedido dela. No entanto, 32,1% dos registros são definidos como “abortos provocados por terceiros sem o consentimento da grávida”.
Conforme apurado pela reportagem, esses boletins envolvem agressões físicas e violência doméstica, mas também casos em que as mulheres acreditam que o aborto foi resultado de negligência ou acompanhamento médico inadequado.
Por outro lado, a maior parte das criminalizações são contra mulheres que optaram pelo aborto. Além disso, do todo, 4,29% dos episódios envolvem menores de idade, de acordo com as notificações.
O levantamento foi feito pelo Metrópoles a partir de dados obtidos via Lei de Acesso à informação (LAI), por meio da Secretaria da Segurança Pública (SSP).
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Ameaças e agressões
“Vou acabar com sua vida, vou matar seu bebê.” Ao ouvir essas brutais palavras ditas pelo ex-namorado, Márcia Aragão, de 21 anos, recebeu chutes na barriga. Em seguida, sob a ameaça de uma arma, a mulher foi coagida a tomar comprimidos abortivos, em setembro de 2023, na região metropolitana de São Paulo.
Com ajuda de familiares, a vítima procurou um hospital e, depois de três dias, a polícia. Márcia está entre as mulheres que entram para a estatística de abortos provocados sem o consentimento da gestante.
Outro caso de violência doméstica que culminou em aborto foi o de Laís Carvalho, de 35 anos. Grávida de quatro meses, em março de 2023, ela foi agredida pelo marido com socos, chutes e um cabo de força de televisão. A fúria resultou na perda da gestação, constatada em uma unidade de saúde, na zona sul da capital paulista.
Em novembro, Tatiana Gomes, de 24 anos, viveu uma situação semelhante de violência exercida pelo ex. “Se eu descobrir que você está com outro cara, vou te matar”, ele dizia.
Socos no rosto e uma rasteira que a derrubou no chão, seguida de chutes e mais golpes, foram a causa de um aborto indesejado, detectado horas depois em um hospital, no interior do estado. Grávida de dois meses, Tatiana só conseguiu chegar ao pronto-socorro porque uma amiga a ajudou a fugir do agressor.
Além da perda emocional, ficaram lesões evidentes no corpo da vítima, principalmente na boca, dedos e olhos. Na delegacia, ela pediu uma medida protetiva contra o ex.
As penas para lesão corporal vão de 3 meses a 8 anos, a depender da gravidade do resultado e se ocorreu em contexto de violência doméstica. Já a tentativa de feminicídio pode gerar sentença de 6 a 20 anos de reclusão.
*Os nomes reais das vítimas foram preservados pela reportagem.
Descriminalização do aborto
De janeiro de 2020 a junho de 2025, cerca de 500 boletins de ocorrência por aborto foram registrados no estado de São Paulo. Do total, 67,9% são de casos induzidos pela própria mulher ou por pedido dela. Profissionais de saúde e equipes jurídicas de hospitais estão entre os autores das queixas policiais.
O Código Penal Brasileiro prevê pena de detenção de um a três anos para a mulher que provocar o próprio aborto ou consentir que outra pessoa o realize. Também criminaliza quem faz o aborto sob consentimento da gestante, com pena de reclusão de um a quatro anos.
Atualmente, no Brasil, o aborto é permitido em três circunstâncias: risco de vida para a gestante, gravidez decorrente de estupro e casos de anencefalia do feto.
No Supremo Tribunal Federal (STF), a discussão sobre a descriminalização do aborto está em andamento, a partir de uma ação do Partido Socialismo e Liberdade (PSol). A Corte tem 2 votos favoráveis: dos ministros aposentados Rosa Weber e Luís Roberto Barroso.
Advogada especialista em direitos humanos e lei do aborto, Rubia Abs da Cruz defende a importância de uma decisão favorável no STF. “Na prática, representaria muito, porque não seria mais crime e as mulheres teriam mais tranquilidade com o real serviço de saúde, morreriam menos, teriam menos problemas em relação à descriminalização do aborto, porque as mulheres se desesperam e optam por qualquer procedimento que pode gerar infecções, problemas graves.”
“Após isso, teria um outro caminho que seria a implementação, no sentido de ter serviços de saúde que realizassem o aborto, porque nós sabemos que existem objetores médicos e também dentro da enfermagem que não querem realizar o aborto no Brasil, mesmo quando é um aborto legal; objeção de consciência, provavelmente por questões religiosas”, complementa a coordenadora nacional do Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem/Brasil).
No cenário de criminalização, abortos provocados no país ocorrem de forma ilegal e uma quantidade expressiva não chega ao sistema de saúde nem à polícia. Apesar dos riscos, mulheres se submetem à clandestinidade. Além de mortes, as sequelas podem ser infecções, perfurações uterinas, hemorragias e infertilidade.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 45% dos abortos no mundo sejam feitos em condições precárias, concentrados principalmente em países com leis restritivas, como o Brasil. Para especialistas, a redução dos abortos inseguros está ligada à educação sexual, acesso a contraceptivos e descriminalização.
Pós-doutora em saúde pública, a pesquisadora Luciana Brito, codiretora da Anis Instituto de Bioética, classifica as denúncias por aborto voluntário como perseguições. “A gente tem visto que essa mulher entra no sistema de Justiça porque ela está sendo punida desde o primeiro dia. Essa mulher atravessou um sistema de saúde para dar uma atenção, um cuidado em saúde por uma emergência obstétrica, e ela passa a ser colocada nesse lugar de uma potencial criminosa”, explica.
