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    “Tremembé” expõe mercado da fé nas prisões (por Gabriella von Flebbe)

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    A série Tremembé, lançada pela Amazon Prime Video, em outubro de 2025, conta a história da Penitenciária II de Tremembé, mais conhecida como “Presídio dos Famosos”, seguindo as narrativas de alguns dos encarcerados mais midiáticas do país, entre eles, Suzane von Richthofen, Elize Matsunaga e Roger Abdelmassih. Mas, para além de uma obra de true crime, ancorada na curiosidade mórbida, a produção traz críticas e reflexões relevantes para aspectos do sistema prisional no Brasil. O grande destaque é a denúncia de um problema profundamente enraizado nas prisões do país: a comercialização da fé.

    Em suas cenas, nos pátios e celas da prisão, Tremembé mostra cultos evangélicos que mais parecem palcos. Há lágrimas, cânticos, pregações inflamadas, além de uma teia de poder que se forma em torno da palavra “salvação”. Uma coisa fica clara: a religião, ali, não é refúgio. É estratégia, é moeda, é hierarquia. É uma performance de redenção que se repete a cada culto, a cada testemunho emocionado, a cada versículo usado como instrumento de controle. As orações ecoam como discursos de autoridade. O sagrado é transformado em espetáculo, e a fé, em ferramenta de gestão.

    Dentro dos muros, quem se converte ganha prestígio, proteção e até benefícios simbólicos. A fé vira instrumento de distinção moral: divide “as regeneradas” das “perdidas”, oferecendo uma nova forma de poder para quem domina o discurso do sagrado. Nesse microcosmo, as grades não apenas separam corpos, mas classificam almas. A salvação passa a ter valor de troca, uma moeda espiritual que garante respeito, visibilidade e, muitas vezes, sobrevivência. As presas que se tornam “irmãs” ganham status; as que resistem à conversão são vistas como ameaça, como se a descrença fosse uma nova forma de pecado.

    Essa representação, embora ficcional, reflete uma realidade documentada há décadas. Com a ausência de políticas públicas e o avanço do Estado penal, as igrejas evangélicas se tornaram presença constante nos presídios brasileiros. O que começou como missão espiritual acabou se convertendo em gestão moral da miséria. Onde falta psicólogo, entra o pastor; onde falta reintegração, chega a conversão. Os templos improvisados dentro das penitenciárias se transformaram em uma espécie de braço religioso do sistema prisional, atuando na pacificação das massas encarceradas. O culto ocupa o lugar do cuidado, e o louvor, o lugar da escuta. A fé se torna uma política não declarada de ressocialização: barata, eficaz e conveniente.

    Na lógica do cárcere – e da sociedade que o sustenta – a fé serve para pacificar, não para questionar. O discurso da “cura” e da “transformação espiritual” substitui o da justiça social. O pecado vira explicação para o crime; o arrependimento, prova de obediência. É o que o sociólogo Loïc Wacquant chama de moralização da pobreza: o castigo como forma de controle moral dos corpos desviantes. A religião, nesse contexto, atua como um dispositivo disciplinar, mascarado de compaixão. Ela não emancipa, domestica. A promessa de redenção não liberta, submete. E, em Tremembé, essa dinâmica é exposta com uma clareza incômoda.

    A série evidencia esse processo sem precisar de didatismo. A religião é filmada como espetáculo: um ritual que serve tanto para disciplinar as presas quanto para entreter o público. A fé é consumida dentro e fora das celas: primeiro pelas detentas, depois por nós, espectadores. A câmera, ao capturar a fé como performance, questiona o quanto essa espiritualidade é genuína e o quanto é apenas uma encenação conveniente, tanto para quem vive o cárcere quanto para quem o assiste de fora.

    Por trás do louvor coletivo e das lágrimas, o que se vê é um sistema que vende redenção enquanto nega dignidade. A Bíblia substitui o Estado. O pastor substitui a política. E o perdão, transformado em produto, garante a manutenção da ordem, religiosa e carcerária. O presídio torna-se, assim, um laboratório da teocracia neoliberal: a fé privatizada, a culpa individualizada e a miséria convertida em oportunidade de lucro simbólico. Enquanto o Estado se ausenta, as igrejas ocupam, com autoridade e com lucro moral. Não vendem apenas salvação; vendem um modelo de sociedade em que o sofrimento é virtude e a submissão, redenção.

    Essa engrenagem se mantém porque cumpre uma função política precisa: pacificar os indesejáveis. Ao transformar o cárcere em templo e o castigo em penitência, o sistema penal encontra na religião sua aliada mais eficaz. A culpa substitui o debate sobre desigualdade; o arrependimento esconde a violência estrutural; a oração silencia o protesto. As mulheres que antes eram rotuladas como perigosas tornam-se “filhas de Deus”, mas continuam sem acesso a políticas de saúde, educação ou trabalho digno. A conversão, nesse contexto, é menos um ato de fé e mais uma estratégia de sobrevivência. A promessa de “vida nova” não rompe com as estruturas que produziram a exclusão, apenas as legitima sob o manto do sagrado.

    No fim, a espiritualidade que deveria libertar é usada para domesticar. A prisão evangélica não é menos prisão: é apenas mais eficiente, mais dócil, mais rentável. A teologia da prosperidade se infiltra nas celas como extensão de um projeto neoliberal que transforma tudo em mercadoria, inclusive o perdão. O corpo encarcerado vira palco de um experimento moral, onde o sofrimento é capital simbólico e a fé, instrumento de gestão.

    Tremembé não acusa diretamente, mas sugere: quem lucra com essa fé? Quem se beneficia da conversão em massa das mulheres encarceradas? A série expõe o vazio deixado pelo Estado e o modo como o mercado religioso se apressa em preenchê-lo. É a teologia da prosperidade adaptada ao cárcere: prometer o céu enquanto se controla a terra. Em um país onde a prisão é também um espelho da desigualdade, a evangelização das celas se torna extensão da evangelização das favelas, um projeto de poder travestido de missão espiritual.

    Assim, essa séria passa a ser mais do que um retrato do “presídio dos famosos”. É um retrato do Brasil: um país em que o encarceramento é moral, e a fé, capital. Onde a punição se confunde com penitência, e o perdão se torna mercadoria. Onde o culto se mistura à cela, e o Estado, ao invés de garantir direitos, delega a salvação. É um retrato de um país em que o cárcere e o templo, juntos, sustentam a mesma promessa: a de que o sofrimento é o caminho da redenção: desde que essa redenção siga o roteiro certo, o da fé domesticada e da obediência conveniente.

     

    Gabriella von Flebbe é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Sociologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Jornalista pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e especialista em Direitos Humanos e Movimentos Sociais pela Uninter. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC) da PUCRS.

    Artigo transcrito do Le Monde diplomatique Brasil (https://diplomatique.org.br/)