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    Da escravidão à autonomia em 59 anos de história: a história de renascimento dos índios Yawanawá

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    Há menos de meio século, indígenas do povo Yawanawá viviam praticamente escravizados em seringais do Acre. Homens trabalhavam alcoolizados, jovens fugiam das aldeias, velhos e crianças morriam de malária, tuberculose e sarampo.

    Pressionados por missionários evangélicos, muitos abandonaram tradições e a língua materna.

    Hoje os Yawanawa são conhecidos por parcerias que mantêm com grandes marcas, por sua presença em fóruns internacionais e por festivais xamânicos em que recebem centenas de visitantes brasileiros e estrangeiros — muitos deles interessados em consumir ayahuasca, bebida sagrada para o grupo.

    Ao longo dessa transformação, conseguiram a demarcação de seu território, reinventaram costumes e expulsaram seringueiros e missionários. A trajetória os tornou uma referência para povos indígenas vizinhos, que acabaram por seguir vários de seus passos.

    “Quando cheguei para liderar o meu povo, em 2001, os Yawanawá estavam com a autoestima muito baixa”, diz à BBC News Brasil Tashka Yawanawá, cacique da aldeia Mutum e um dos responsáveis pelo que chama de “renascimento cultural e espiritual” do povo.

    Com 46 anos, Tashka nasceu quando os seringueiros ainda ocupavam o território yawanawá, uma trecho de Floresta Amazônica cortado pelo rio Gregório, próximo à fronteira com o Peru.

    Os forasteiros chegaram à região há cerca de um século, durante o Ciclo da Borracha. Até então sem contato regular com o mundo exterior, os Yawanawá foram recrutados para extrair látex das seringueiras.

    Com o tempo, os indígenas foram abandonando as roças e passaram a depender cada vez mais dos donos dos seringais, que cobravam preços exorbitantes por roupas e alimentos. Capangas armados fiscalizavam os locais de trabalho.

    Eles acabaram se tornando escravos por dívidas, sujeitos ao alcoolismo, à prostituição e às doenças trazidas pelos seringueiros.

    Enquanto os patrões seringalistas os apertavam de um lado, missionários evangélicos americanos da News Tribes Mission (Novas Tribos do Brasil) os cercavam do outro.

    Líder da aldeia Nova Esperança, Biraci Júnior Yawanawá diz à BBC News Brasil que os patrões e os missionários trabalhavam numa espécie de parceria e estimulavam um “sistema individualista” entre os indígenas.

    Demarcação do território

    O cenário começou a mudar quando, nos anos 1980, jovens yawanawá enviados à cidade para estudar — entre os quais o pai de Biraci Júnior, o cacique Biraci Brasil — entraram em contato com o incipiente movimento indígena acreano e com ONGs que o assessoravam, como a Comissão Pró-Índio do Acre. Informaram-se sobre seus direitos e voltaram às aldeias para por fim à exploração.

    A mobilização levou à demarcação da Terra Indígena Rio Gregório, em 1983. Na época com 983 mil hectares, o equivalente a um terço do Estado de Alagoas, ela foi a primeira terra indígena demarcada do Acre. Em 2007, o território dobrou de tamanho.

    Com a terra assegurada, os indígenas invadiram os barracões dos seringueiros para expulsá-los. Depois, foram atrás dos missionários.

    Naquela altura, conta Biraci Júnior, os Yawanawá estavam tão habituados à presença dos religiosos que alguns protestaram, argumentando que os missionários haviam construído escolas e distribuíam remédios às comunidades. Coube a Biraci Brasil convencê-los de que tudo ficaria bem.

    “Ele explicou que nós vivíamos antes dos missionários, tínhamos nossas medicinas, nossas plantas. Dizia que tínhamos que acreditar no poder delas, e a partir daí começou o trabalho de perguntar aos mais velhos, aos pajés, que estavam há tanto tempo adormecidos, para fazê-los puxar da lembrança o conhecimento, as rezas de cura, os cantos cerimoniais, e reavivar toda a espiritualidade”, diz o indígena.

    Depois que os Yawanawá expulsaram os missionários, outras comunidades nativas acreanas fizeram o mesmo.

    Trajetória dos índios Yawanawá se tornou referência para povos vizinhos  — Foto: Sérgio Vale/Secom-ACTrajetória dos índios Yawanawá se tornou referência para povos vizinhos  — Foto: Sérgio Vale/Secom-AC

    Trajetória dos índios Yawanawá se tornou referência para povos vizinhos — Foto: Sérgio Vale/Secom-AC

    Retomada da ayahuasca

    Desse movimento de resgate também participaram sertanistas — servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) que trabalhavam junto às comunidades indígenas.

    No artigo “Os outros da festa: um sobrevoo por festivais yawanawá e huni kuin”, publicado em 2018 pela revista Horizontes Antropológicos, a doutoranda em Antropologia na USP Aline Ferreira Oliveira descreve como indígenas acreanos retomaram o consumo da ayahuasca.

    A bebida, feita com duas plantas amazônicas, tem propriedades psicodélicas e havia sido proibida por misionários que viviam entre entre os nativos grupos. Nos anos 1990, indígenas que viviam nas cidades próximas às aldeias, como Rio Branco, Tarauacá e Cruzeiro do Sul, foram reapresentados a ela em encontros com sertanistas e adeptos de doutrinas associadas à ayahuasca, das quais a mais conhecida é o Santo Daime.

    O Santo Daime foi fundado por um seringueiro negro, o migrante maranhense Raimundo Irineu Serra (1890-1971). Após conhecer a bebida por intermédio de indígenas acreanos no início do século 20, Irineu formulou uma corrente religiosa que mescla elementos cristãos, africanos, nordestinos e ameríndios.

    Oliveira diz que os encontros em que os indígenas retomaram o contato com o chá tinham clima festivo e instrumentos musicais, duas características das religiões daimistas que acabaram absorvidas pelos indígenas em sua reapropriação da substância. Hoje muitos grupos indígenas romperam os laços com essas religiões e passaram a seguir ritos próprios em relação à bebida, à qual atribuem propriedades de cura e o poder de conectar os mundos físico e espiritual.

    Por João Fellet, BBC Brasil