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    O “gostar” que escraviza

    Por Hugo Brito

     

    Era estranho vê-la assim. Estranho não, dolorido, indignante, cruel.

    Recordei-me com facilidade dos seus dias felizes. Ela era só alegria e dizia insistentemente do quanto estava apaixonada. Eu a encorajava a viver o momento. Ele era filho único. Ela também. Conheceram-se em um congresso realizado na faculdade em que ambos estudavam. Lambuzaram-se em desejos e promessas.

    Tudo ia bem… três meses de namoro… o noivado.

    Achei tudo muito apressado, mas na qualidade de amiga há tantos anos, não quis estragar tantos sorrisos.

    Atiçada pela curiosidade, buscava saber mais da vida dos dois. Mas eu já não mais a via. Os nossos encontros, que antes eram constantes e espontâneos, resumiram-se às mensagens curtas e atrasadas no whatsApp.  E sempre que marcávamos algo, ela confirmava para logo depois dizer que não poderia ir. As desculpas eram variadas e estranhas. Apeguei-me a crença de que a razão de tudo eram as ocupações para o casamento.

    Lembro-me, também, que recebi uma ligação de sua mãe. Notei preocupação em seu tom de voz. E com delicadeza e um jeito todo maternal, ela me indagou acerca do comportamento da filha. Aquela perguntou causou-me inquietação, afinal, ao que parecia, não era apenas eu a notar as mudanças que Marcela vinha demonstrando sofrer. Acudiu-me a ideia de ligar para uma amiga em comum, e que era colega de faculdade e de trabalho de Marcela. Minhas preocupações aumentaram. Marcela não frequentava mais à universidade há mais de dois meses, descobri. No trabalho, pelo que soube, a moça alegre e que gostava de falar do futuro deu lugar ao silêncio e ao semblante de dor. Por vezes encontraram-na chorando, ela dizia ser saudade dos pais, que moravam no interior do Estado. Ninguém acreditava.

       Mas foi em uma noite regada por uma chuva intensa que fui surpreendida pelas batidas em minha porta. Temi abri-la, afinal, moro sozinha. Mas aí as batidas se seguiram entremeadas com um grito que dizia: “sou eu, a Marcela. Abre, por favor!”. Escancarei a porta e deparei-me com uma cena de dor. As lágrimas de minha amiga confundiam-se com o sangue que estava escorrendo pelo seu rosto. Ela estava muito machucada e igualmente assustada. Eu a acolhi. Em soluços, ela disse tudo: contou das agressões que vinha sofrendo por parte de seu noivo. Disse da maneira sutil como as fealdades da relação foram aparecendo. Esclareceu como o encantamento transformou-se em cobrança e dor. Que no início ele demonstrava ciúmes, mas não era violento, e ela até via suas manifestações como algo bom, pois era um sinal de que ele lhe devotava amor, e que quem ama cuida.  Com o tempo, entretanto, ele passou a incomodar-se com o fato de ela estar em um grupo da família no whatsApp, onde havia diversos familiares. Depois veio a proibição das roupas. Na sequência, o incômodo com a nossa amizade. Ele a proibiu de falar comigo, e, para tanto, usou o argumento de que eu a iria pôr no mal caminho, pois era solteira. 

    Após tantas proibições, o primeiro soco. Marcela foi agredida porque discordou do namorado. Após agredi-la, ele a abraçou, ensaiou algumas lágrimas e pediu perdão. Ela o perdoou. Dias se seguiram de paz, e um futuro bom pareceu lhe acenar. Mas então veio a segunda agressão. A razão? Enquanto assistiam a um filme, em casa, ela mencionou com sorrisos sobre a beleza de um dos atores, e tanto bastou para uma agressão ainda maior que a última. Dessa vez os socos vieram acompanhados pelas ameaças. Depois o pedido de perdão e a promessa de que aquilo não mais tornaria a ocorrer. Ela disse não e veio bater à minha porta.

    Após ouvir horrorizada aqueles pormenores, incentivei Marcela a ir comigo à uma delegacia da mulher. Era preciso denuncia tudo aquilo e pedir uma medida protetiva. Ela não quis e argumentou que não queria vê-lo preso. Disse ainda que se tratava de um homem bom e que só precisava de ajuda. Falou das orações diárias que devotava à melhora de seu companheiro. Concluiu, por fim, que ela também tinha culpa, pois dava muitas razões para que ele ficasse daquele jeito.

     Pediu para dormir em minha casa. No dia seguinte, retornou para a sua.

    Agora, vê-la neste estado, deitada sem vida em um caixão, também me faz sentir culpada. Eu deveria tê-la convencido a ir à delegacia. E mais que isso, ainda que ela permanecesse com sua postura de resistência, eu mesma deveria ter ido. Era melhor perder uma amizade para a discordância, do que perdê-la para a violência desmedida que trouxe consigo a morte de alguém que eu tanto amo.

    **Hugo Brito  é  advogado e amante incurável  dos bons livros